Linda, na sua nudez de mulher |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 15
CONTINUAÇÃO DO CAPÍTULO
INTERROMPIDO
Quando Perpétua casou, dona Carmosina teve um alento de
esperança. Se Perpétua, mais velha, mais feia – pois simpatia também marca
ponto em concurso de miss – mas com aquela cara de prisão de ventre crónica,
sem graça, ressentida, encontrara quem a qui sesse,
quem lhe pedisse a mão em casamento e a levasse ao altar de véu e grinalda,
figura ridícula!, cabia a Carmosina, mais moça, inteligente, culta, cultíssima!
risonha e cordial, ao demais cozinheira de mão cheia, o direito a sonhar, a não
cair em desespero.
Ah!, Major Cupertino Batista existiu um só, milagres não se repetem.
Reformado
por motivos de saúde, cinquentão asmático e cardíaco, curto de entendimento,
duro de cabeça, obtuso, um bobo alegre, nem por tudo isso partido desprezível.
Solteiro, tinha economias, reservas monetárias e físicas: ao partir para o
reino dos céus deixara Perpétua com dois filhos e herdeira de três casas, além
da pensão e do dinheiro a render juros.
A herança, Carmosina dava de barato mas
– suspira – durante seis anos e um mês, setenta e três meses, duas mil duzentas
e vinte e uma noites, contando a do ano bissexto, a bruaca, a desinfeliz – a
sortuda, a felizarda! – dormira em cama de casal com um homem ao lado, sob as
mesmas cobertas, marido válido até à última gota, pois Perpétua tivera aborto
pouco antes do Major bater continência e a festa terminar.
Escreve luxúria letra a letra nos quadrados de jogo das palavras cruzadas, o
pensamento voa de Perpétua para Elisa (a pobre, agoniada, esquecera as revistas);
de Elisa para Antonieta.
Antonieta, essa sim, merecera a vida conjugal e a fortuna: alegre, divertida,
bondosa, um encanto de criatura. Muito chegada à casa de Carmosina, colegas na
escola primária; dona Milú, dedicava-lhe particular estima e a defendia quando
as más-línguas vinham tosar na pele da moça, melhor dito nas carnes da
rapariga. Moça falada, na boca das comadres:
- Aquela já perdeu os tampos há muito…
- Já foi chamada às ordens…
- Moça, aquela sujeitinha? Rapariga é o que ela é… dá para Deus e o mundo…
Dona Milú punha fim à conversa, dispersava o elenco;
- Se ela está dando, dá o que é dela e eu nunca soube que se deitasse com homem
por dinheiro, é o corpo que pede. Que pede a ela e a todas, não é mesmo
Roberta? As outras não dão, trancam com sete chaves mas só a caixa da periqui ta. O resto não faz mal, não é isso, Gesilda? Do
sovaco ao fiofó, tudo vasculhado.
Parecia mudar de assunto:
- Que apelido mais bonito os rapazes botaram nas tuas gémeas, Francisca. Não
sabe? Pois lhe informo: Mãos de Ouro e Prata, achei lindo… - Dona Milú era uma
parada!
Quando Tieta, surrada e expulsa partiu no caminhão, Carmosina viera se
despedir, a única. Vá dizer adeus a sua amiga, a mãe ordenara. Visíveis as
marcas da véspera, o bordão atingira-lhe o rosto, roxas equi moses
nas pernas, Tieta não se queixou. Pode ser para meu bem, disse. Acertara.
Nos últimos onze anos e sete meses, raro o dia em que dona Carmosina não
recorda Antonieta. Desde a chegada da primeira missiva, acompanhara, carta a
carta, a correspondência trocada entre Sant’Ana do Agreste e a Caixa Postal
6211 da Capital de São Paulo.
Está por dentro de tudo, sabe mais que as
próprias irmãs de Tieta, muito mais. Por conhecimento directo e por dedução.
Vira o cheque engordar ao passar do tempo, com a desvalorização do cruzeiro e
as lamúrias das irmãs. Corrigira – na prática redigira – as cartas de Elisa,
fraca na gramática; lera as de Perpétua, as de Perpétua e as demais.
As irmãs,
após a morte do Major, haviam dividido o dever e o prazer das respostas, como
dividiam o conteúdo das encomendas postais, vestidos, blusas e saias,
camisolas.
Perpétua, quando lhe competia escrever, vinha com o envelope
fechado, tolice! Dona Carmosina não merecia o ordenado e o privilégio do cargo
se não fosse perita em descolar envelopes, ler as páginas num piscar de olhos e
por tudo em ordem novamente. Só lhe custava conter o desejo de emendar os erros
de português.
Além da indefectível bênção do velho Zé Esteves. Deus te abençoe e te aumente,
minha filha, cada carta continha queixas da filha, louvores à querida mana e a
curiosidade das irmãs e do cunhado. Antonieta respondia com bilhetes curtos – a
letra graúda, o papel caro e chique com um A gótico em alto-relevo – que Elisa
e dona Carmosina devoravam juntas, ali mesmo na repartição.
Dona Carmosina lera também a carta de Ricardo, a de Ricardo e outras. Aliás,
fora a ingénua epístola do rapaz, pedindo à tia bênção, bola de futebol e
discrição que… nada, isso não interessa a ninguém – dona Carmosina afasta a
lembrança, retorna às palavras cruzadas: fruta brasileira de origem asiática,
cinco letras, fácil demais.
Essa longa correspondência, agora de repente encerrada sem explicação válida, a
não ser doença grave ou morte de Tieta, revestia-se de aspectos dignos de atenção
e estudo, a começar pela falta de endereço completo da destinatária de São
Paulo, rua, número da porta e do apartamento, se vivesse em edifício; apenas
uma caixa postal, fria e anónima.
Apesar de Agreste não passar de um ovo onde
todos se conheciam, tanto Perpétua quanto Elisa apressaram-se a enviar
endereços completos. Perpétua Esteves Batista, Praça Desembargador Oliva,
número 19; Elisa Esteves Simas Rua do Rosado, 28; inclusive endereço do pai:
José Esteves Filho, Beco da Matança, s.n.
E o marido? Sem idade, sem rosto, impalpável. Pronome, comendas, vagas
indústrias, os cabelos brancos na foto da revista. Dona Carmosina dedicou
grande parte do seu tempo à análise e ao esclarecimento da apaixonante advinha.
Reunindo dados, pistas e conjecturando.
O Major, ainda vivo, encarregara-se da resposta inicial mas não chegou ao fim
sem pedir auxílio a dona Carmosina. Ela pôs ordem nas notícias, dando ênfase
aos factos, quando necessário. Carta longa, relatório abarcando cerca de qui nze anos de acontecimentos.
Notícias de toda a família, detalhadas. Do pai, Zé Esteves, beirando os oitenta
mas sempre rijo, e de Tonha, a segunda esposa (mais moça do que Perpétua, da
idade de Tieta, mas acabada na pobreza e no desleixo, simples apêndice do
Velho).
Vivia o casal da caridade de filhas e genros, nada possuindo de seu,
nem bens nem rendas. Zé Esteves, trapalhão a julgar-se sabido, na ânsia de
enganar os outros pusera fora terras, rebanhos de cabras, plantações de
mandioca, a casa própria, tudo.
Abençoava a filha e a perdoava, pedia-lhe uma
esmola. Dona Carmosina modificou a redacção, a forma e o conteúdo, em lugar de
Zé Esteves perdoar, pediu perdão à filha, falou da velhice e da pobreza,
insinuando ajuda; um pai pode pedir perdão mas não pode pedir esmola aos filhos.
Trecho tão comovente, na bela letra do Major, ia tocar o coração de Tieta, a
própria dona Carmosina ficara com os olhos húmidos. Sempre tivera jeito para
escrever, jeito e vontade. Mas, cadê coragem?
Relato do casamento de Perpétua, nome e título do marido, Major Cupertino
Batista, oficial reformado da polícia Militar do Estado, seu cunhado às ordens.
Deus abençoara o matrimónio, dera-lhe dois filhos, Ricardo, de cinco anos,
Cupertino, dito Peto, de dois, e agora novamente fecundara o ventre de Perpétua,
grávida daquele que seria o terceiro se houvesse nascido.
O Major, bom de espoleta, não negava fogo, constatara dona Carmosina, mas não
tocou nesse trecho, não queria histórias com Perpétua. Encarregou-se, sim, de
descrever o casamento de Elisa, a noiva mais linda já vista em Agreste, com
Astério Simas, filho e herdeiro de seu Ananias, aquele da loja de fazendas da
Rua da Frente, só que a loja nem parecia a mesma.
Na longínqua e decadente cidade de Sant’Ana do Agreste o comércio reduzira-se a
metade naqueles qui nze anos. Também
a população diminuíra, composta por uma maioria de velhos, pois o clima
continuava admirável, prolongando a vida dos que ali se deixavam ficar apesar
da pobreza, da falta de recursos e de futuro.
O povo só não morria de fome porque
o rio e o mangue forneciam com fartura peixes, guaiamus, caranguejos, pitus
incomparáveis, e sobravam frutas o ano inteiro: bananas, mangas, jacas,
mangabas, pinhas, abacaxis, goiabas e araçás, sapotis e melancias e o coqueiral
sem fim e sem dono.
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