(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 2
EXÓRDIO OU INTRODUÇÃO ONDE O AUTOR, UM FINÒRIO, TENTA EXIMIR-SE DE TODA E QUALQUER RESPONSABILIDADE E TERMINA POR LANÇAR IMPRUDENTE DESAFIO À ARGÚCIA DO LEITOR COM SIBILINA PERGUNTA
Começo por avisar: não assumo qualquer responsabilidade
pela exactidão dos factos, não ponho a mão no fogo, só um louco o faria. Não
apenas por serem decorridos mais de dez anos mas sobretudo porque verdade cada
um tem a sua, razão também, e no caso em apreço não enxergo perspectiva de
meio-termo, de acordo entre as partes.
Enredo incoerente, confuso episódio, pleno de contradições e absurdos,
conseguiu atravessar a distância a mediar entre a esquecida cidadezinha
fronteiriça e a capital - os duzentos e setenta qui lómetros
de buracos no asfalto de segunda e os quarenta e oito de lama de primeira ou de
poeira de primeiríssima, pó vermelho que se incrusta na pele e resiste aos
sabonetes finos - indo ressoar na imprensa metropolitana.
Noticiário de começo entre galhofeiro e sensacionalista, logo após
patriótico e discreto pois muito bem pago, dissolvendo-se rápido em anúncios,
alguns de página inteira.
Certo semanário de tradições duvidosas - adjectivo mal empregado: por
que duvidosas? - meteu-se a valente em editorial de primeira página, com
vermelha manchete agressiva, ameaçou enviar repórter e fotógrafo àqueles
confins para esclarecer a gravíssima denúncia, o monstruoso conluio, o perigo
estarrecedor, etc. e tal.
Arrogância e indignação duraram apenas um número, a valentia o probo
director a enfiou no rabo e esqueceu o escaldante tema.
Ainda jovem mas já veterano nas lides da imprensa, arrotando em surdina
ideologia radical e princípios explosivos, visando porém fins benéficos, Leonel
Vieira afogou protestos e ameaças em uísque escocês, na grata companhia do
doutor Mirko Stefano e de algumas apetitosas moças, todas elas relações - públicas de muita animação e pouca vestimenta.
Pouca, em termos: duas entre as
mais bem modeladas exibiam longas túnicas transparentes e por baixo nada ou
quase nada, túnicas essas, na opinião de entendidos, mais excitantes do que os
curtos shortes ou os sumários biquínis.
Amável tema de debate entre o doutor e
o jornalista, única divergência a separá-los, no bar, à borda da piscina. No
mais acordo total. Quanto a mim, se me permitem opinar, prefiro os longos
transparentes lambidos por uma réstia de luz, revelando volumes e sombras, ai!
Mas que importa a minha opinião?
A minha, a vossa, outra qualquer ante os potentes argumentos do doutor
Stefano, argumentos em divisas, afirmam, se bem não haja absoluta certeza sobre
a moeda original, dólares ou marcos ocidentais, as duas talvez. Tão
irresistível dialéctica do simpático testa - de - ferro, levou o astuto
cronista social Dorian Gray Júnior a proclamá-lo Mirkus, o Magnífico Doutor em
desbunde de adulação.
Simples testa - de – ferro de ignotos patrões, conforme insinuou o
semanário naquele exclusivo e atrevido editorial – atrevido, exclusivo e muito
bem capitalizado; sendo, além do mais, uma garantia à esquerda pois que outro
órgão da imprensa falada ou escrita ousou interpelar e ameaçar?
Posição clara e definida, prova a ser exibida, se necessário; ninguém
sabe o que pode acontecer no dia de amanhã, recente, aí está, o exemplo de
Portugal, quem poderia prever?
Ao demais não hão-de ser assim um simples
cheque, por mais polpudo, garrafas de escocês e o ventre em flor das
permissivas relações – públicas que abalarão as convicções ideológicas, os
sólidos princípios do intemerato e dúctil jornalista: Leonel Vieira possui
fibra e carácter capazes de digerirem cheques, licores e beldades, conservando
imutáveis princípios e ideologia.
Embolsa o cheque, escorna no uísque, baba cangotes e chibius, manera o
jornal e ao mesmo tempo proclama – baixinho – os princípios, radicalíssimo. Um
porreta!
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