sexta-feira, dezembro 04, 2015

Em 1º plano à nossa esquerda
Mário

Martins

















Eu e o Mário Martins nascemos em casas uma ao lado da outra. Entre elas, a separá-las, apenas uma ponte por onde passavam os comboios, nesse tempo, quase todos puxados ainda a máquinas de vapor.

Separam-nos cinco anos em idade e quando entrei na escola ele tinha saído dela apontado pela severa professora, a Srª Dª Ludovina, como o melhor aluno que por lá passara.

A ponte, em vez de nos separar uniu-nos como o hífen liga as palavras e os comboios representavam pontos de exclamação, uns mais lentos, outros mais rápidos...


Convivemos ao longo dos meus primeiros onze anos, depois fui-me embora e a vida separou-nos mas nunca o esqueci.

O Mário fazia-me magias, autenticas, que eu, cinco anos mais novo, não podia compreender porque não possuía os seus dotes, raros, e logo também não as pude esquecer.

Para além da inteligência ímpar e dos cinco sentidos que todos nós temos, o Mário tinha um segundo ouvido, um super ouvido, que nunca me disse que tinha e eu, criança, não suficientemente esperto, jamais percebi interessado que estava nas aventuras do Cisco Kid do Mundo de Aventuras que fazia as minhas delícias.

Ficava-me pela magia, um truque que ele fazia, e não passava daqui para não matar a cabeça. No fundo, era bom ter um amigo mágico!

- Quim, dizia-me, estás a ouvir o comboio que vem lá? – Sim, eu ouvia um comboio.

- Pois vou dizer-te o número da máquina que o puxa.

Acentuava-se, à distância, o “pouca-terra”; “pouca-terra”; “pouca-terra”, cada vez mais rápido e, finalmente, depois daquelas deliciosas apitadelas, que preenchem as minhas saudades, e serviam para anunciar a partida da Estação de Braço-de-Prata, ali ao pé, aí vinha ele, depois de descrever a totalidade da curva, lá ao fundo, negro, envolto em fumo, a resfolgar, como que entusiasmado com a corrida que começara, tal monstro inofensivo, perfeitamente domesticado, direito a nós.

Então, o Mário, sem esperar por ele, dizia-me o Número da máquina e nunca me lembro  de que alguma vez se tivesse enganado...

Hoje, já sei, que ele disse-me agora, as máquinas emitiam sons diferentes sobre os carris conforme as séries a que pertenciam e o super ouvido do Mário lia nesses sons o número que eu só via quando ele passava à minha beira.

Era essa a magia que finalmente, sessenta e cinco anos depois, ficou explicada...

Há semanas viu-o na Rua do Ouro. Um grande abraço ao fim de tantos anos e... mais uma magia:

 - Mário, temos que almoçar juntos! Telefona-me que eu venho a Lisboa de propósito nesse dia... mas não tenho aqui nem papel nem esferográfica para te dar o número do meu telefone.

Não precisa, diz-me ele... e um número de nove algarismos gritado no meio da rua foi suficiente para que aquela cabeça, 81 anos feitos na 2ª feira anterior, o tivesse registado e, no fim de algumas semanas me estivesse a telefonar.

Um prodígio!... a sua inteligência, memória, modéstia, sentido de humor e, claro está, o seu super-ouvido.

Desabafou modestamente comigo:

- Quim! a minha cabeça de tanta coisa que guarda é um autentico caixote de lixo.

- Caixote de lixo???... - Então óperas inteiras, músicas de todo o estilo e género, vozes de dezenas ou centenas de cantores, caracterizadas e classificadas, é lixo???...

O Mário não tem computador e o próprio telefone é só para receber e fazer chamadas. Não gosta das novas tecnologias, também, para quê, se ele tem um You tube dentro de si?

Como Director na Valentim de Carvalho, durante muitos anos, descobriu artistas, fez artistas, ensinou-os a cantar, descobriu-lhes cantigas, fez-lhes outras, reportórios inteiros:

- Marco Paulo, António Variações, Carlos Paião, Paco Bandeira, Lara Li... e produziu discos de Luís Góis, Fafá de Belém, Nuno da Câmara Pereira, José Cid, Júlio Pereira, Jorge Palma, Alexandra... mas o Album de “O Nazareno”, de Frei Hermano da Câmara, foi a sua mais complexa produção.

... Naturalmente, que o sexto ouvido com que o Mário nasceu dotado, não iria servir só, em rapazinho, meu vizinho e amigo de casa, apreciado e querido da minha mãe, para descobrir o número das máquinas de comboio a vapor pelo som que elas faziam sobre os carris...

Teria, fatalmente, que o tornar, durante muitos anos, ao Serviço da Valentim de Carvalho, a pessoa mais interveniente na música ligeira portuguesa e mais importante na vida de muitos cantores para os quais terá sido decisivo.

Como dizia a mãe de Jorge Amado: - “O meu filho nasceu com uma estrelinha”....  Tal como o meu amigo Mário, adito eu, que tive a sorte de ter na minha infância a fazer magia.



NOTA - Mário Martins é um produtor português. Também foi da A&R e  em várias editoras. (Da Wiquipédia)

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