sábado, dezembro 05, 2015

Linda, na sua nudez de mulher
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº23

































DO SEGUNDO ROUND, COMPLETAMENTE FAVORÁVEL A DONA CARMOSINA, A CAMPEÃ DOS CORREIOS E TELÉGRAFOS





Nem dona Carmosina tomada de surpresa, tenta negar que Perpétua lavrara um tento. Confirma a tese jurídica, mas exibe aquele sorriso inocente, suspeitíssimo, de quem possui naipe marcado, carta decisiva:

- É isso mesmo. Vocês estão aí, estão ricos. Metade para seu Zé Esteves, a outra metade para vocês as duas. Só falta é encontrar marido, não é?

- Exactamente – Perpétua domina a conversa e mesmo a agente dos Correios ouve com atenção: - A gente nunca soube o nome inteiro do marido dela. Felipe, como se não tivesse pai. Rico, isso se sabe, comendador também. Mas Felipe de quê? Que tipo de indústria? Comendador do Papa ou do Governo? Sempre achei isso esquisito mas encontrei logo a explicação, faz tempo.

Ao contrário do que pensara dona Carmosina, a Perpétua não bastara o cheque, o dinheiro mensal. Também ela pusera a cabeça a pensar, a deduzir.

Igual a dona Carmosina, em cujos lábios, no entanto, permanece o sorriso inocente, de criança.

- E que explicação encontrou?

Todos ansiosos por saber, Perpétua esconde a vaidade na voz sibilante, desagradável, apesar da súbita fortuna:

- O marido proibiu que ela nos falasse dele para não ter, um dia, que prestar contas… exactamente para isso.

- Será? – Dona Carmosina demonstra o cepticismo.

- Ela tinha era vergonha da gente, medo de que a gente, se soubesse mais sobre o marido dela, começasse a explorar.

- Para Elisa, as sujeiras, as más intenções são dela, de Astério, do pai. Tieta e os seus são ricos e bons, inatacáveis.

- Talvez. – Dona Carmosina parece pesar e medir, comparar os argumentos.

- Seja como for, minha parte ele vai me entregar, nem que eu tenha de virar mundos e fundos. – Cada vez maior na cadeira, Perpétua não se dá ao trabalho de contestar Elisa: - Vou descobrir o endereço, quando ele menos esperar estouro na casa dele. O que é meu e dos meus filhos ninguém me tira.

- Tu falou hoje com padre Mariano, o que foi que ele disse?

- Disse para não nos apressarmos, que ainda não há provas da morte de Antonieta, que a gente esperasse. Espere quem quiser, não eu! Segunda-feira me toco para Esplanada, vou conversar com o doutor Rubim…

- Com o Juiz de Direito? – Dona Carmosina balança a cabeça, parece de acordo.

Os olhos pequenos, semicerrados, consideram Astério e Elisa, pousam na imponência de Perpétua refastelada na cadeira de palha, parece um sapo-cururu.

Perdoa-me, Elisa, roubar a tua herança, tu e Astério merecem melhor sorte, mas não posso suportar a arrogância dessa caga-sebo. – É, essa história de sobrenome do marido de Tieta, eu também sempre achei muito atrapalhada. Só que cheguei a outra conclusão, diferente da de vocês duas.

- Perpétua não teme competição:

- Pois venha lá.

- Você, Perpétua, não levou em conta certos dados, eu diria pistas. Ela mandou falar nas enteadas, não?

- Sim metade é para a família dele.

- Não é de herança que falo, essa herança não existe…

- Como?

- Não diga isso… - pede Astério, recaindo em dores.

- Tenho pena, Astério, de lhe desiludir, mas se vocês pensarem um minuto, se puserem as células cinzentas em acção, compreenderão que Tieta vivia ou vive, com este senhor Comendador como esposa mas sem casamento legal, certamente ele é desquitado.

Um casal como milhares de outros no Brasil. É a única explicação que existe e, nesse caso, somente a família dele tem direito à herança.

- Ai! – padece Astério, vendo a fortuna dissolver-se, a riqueza ir água abaixo, breve ilusão, novamente pobre como Jó.

Perpétua é a única que não se altera, a não ser que se chame de sorriso a leve contracção dos lábios:

- Como teoria, é engenhosa. Fora disso, não vale nada.

- Você tem melhor?...

- A minha é melhor e tenho provas.

- Provas, como?

- Casada, casadinha da silva, no religioso e no civil. Posso garantir e vou provar.

- É o que eu quero ver. – Leve vacilação na voz de dona Carmosina.

Elisa, em lágrimas, Astério, rico e pobre, pobre e rico, sem saber se a dor persiste ou não. Do fundo do bolso, Perpétua extrai um envelope e do envelope um recorte de jornal:

- Você, que lê tantos jornais à custa dos outros, Carmosina, não leu esse.

- Vangloria-se da ajuda divina: - Quem é devoto de Sant’Ana, quem ocupa seu tempo com as coisas da Igreja, conta com a protecção de Deus.

- Fale de uma vez! – até Astério se irrita, ele, em geral, tão tímido diante da cunhada. - Desembuche!

Recorte na mão, Perpétua não tem pressa.

- Ainda não fazem dois meses, fui a Aracaju beijar a mão de Dom José, saber dos estudos de Ricardo. Aproveitei e fiz uma visita a dona Nícia, a esposa do doutor Simões, do Banco…

- Foi vender vestidos mandados por Tieta…

- Os que ficaram para mim. Melhor vender do que me exibir com eles. Nas capitais, vá lá que se use, mas aqui… Dona Nícia me mostrou um jornal de São Paulo, Folha de Manhã, a página social com as notícias da gente importante, onde falavam de uma amiga dela que foi visitar parentes. Me apontou uma notícia, dizendo: Penso que é sobre sua irmã. Depois cortou o pedaço e me deu.

Coloca os óculos lentamente, aproxima o recorte da luz. Astério se levanta da cadeira, Elisa muda de lugar para ficar perto, ninguém quer perder uma palavra.

Nesse momento exacto ouvem-se vozes na porta da rua:

- Tenha calma, homem!

- Nem calma nem meia calma, cambada de ladrões!

O velho Zé Esteves penetra na sala, acompanhado de Tonha. Plantado sobre as pernas, o rosto fechado em ira, ergue o bordão e brada:

- Quero meu dinheiro, seus ladrões! Onde meteram, que fizeram dele?

O dinheiro que me manda e vocês roubam! Que invenção é essa de dizer que ela morreu e por isso o dinheiro não chegou? Cambada de ladrões! Quero meu dinheiro, agora!

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