quinta-feira, janeiro 14, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 154



















Um frémito de terror percorreu-lhe a espinha. Zulmira parecia ainda absorta no seu mundo de prazer, mas Zaida parou as carícias.

Fátima? Gritou alarmada.

Mem saltou da piscina enquanto a mãe das raparigas protestava contra aquela inesperada interrupção.

Agarrando no saiote e na camisa, correu pelo corredor, saindo para a rua ainda nu.

Cá fora reparou em três coisas em simultâneo. À sua direita, Fátima estava sentada no chão, encostada à parede pálida e a tremer. A dois passos dela via-se uma flecha quebrada. À sua esquerda, já longe, um homem alto, com vestes de mendigo, corria desenfreadamente, junto a uns casebres. E à sua frente, pelo caminho que levava à cidade muralhada, chegavam três homens em passo rápido, comandados por Ramiro, que vinha com o arco na mão.

Mem vestiu o saiote, enfiou a camisa e ajoelhou. Fátima mal conseguia falar, mas apontava para os casebres. Quando Ramiro, o Velho e o Rato chegaram, o primeiro ordenou aos outros que perseguissem o fugitivo, e depois contou:

 - Uma mendiga disse-nos que as mouras tinham saído de casa, pela primeira vez em muitos dias, e que um pedinte as seguira.

Os monges guerreiros da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo haviam passado o verão em Coimbra, recuperando os seus feridos e esperando que Gondomar ficasse melhor dos olhos.

Dias antes, haviam ouvido falar num desconhecido que rondava o castelo, e tinham redobrado a vigilância.

Mem virou-se para Fátima e afirmou:

 - É o homem que matou o meu pai, lembro-me dele.

Ramiro interrogou a rapariga:

Abu Zhakaria quer resgatar-vos, este homem quer matar-vos!

Quem sois vós para tanto alarido?

Nesta altura saíram dos banhos públicos Zulmira e Zaida, já vestidas e recompostas.

Mem olhou para Zulmira, sentiu-se mal por ter deixado incompleto o que aquela mulher tanto desejava, mas ela desviou o olhar e respondeu à pergunta de Ramiro:

 - Sou a mulher de um antigo governador de Córdova, nada mais do que isso. Não percebo porque me querem matar, ou às minhas filhas.

Nem Mem nem Ramiro acreditaram nela. Entretanto, o Rato e o Velho regressaram esbaforidos, e o primeiro disse:

 - O mendigo desapareceu.

Ramiro deu ordem de retorno à cidade, prometendo uma busca mais intensa. Já a caminho, de sobrolho carregado, perguntou a Mem:

 - Não sabeis que as leis cristãs proíbem que homens e mulheres tomem banho juntos?

 - Estava a guardá-las respondeu Mem.

Ramiro estacou e a pequena comitiva parou também. O Rato riu-se com a malícia e o Velho olhou para as mouras com desdém.

Zulmira intuiu que eles eram como os essénios, só gostavam uns dos outros.

- Nu? – perguntou Ramiro.

O almocreve emudeceu, não queria pôr em risco o seu comércio.

Em sua defesa e fingindo-se ofendida, Zulmira protestou.

 - Ele estava na sauna, não na piscina connosco! Por quem me tomais?

Sou viúva já por duas vezes, deveis-me respeito! Não tenho idade para ser insultada por um rapazola.

Ramiro semicerrou os olhos e em voz baixa retorquiu-lhe:

- Se não fosse o rapazola, a esta hora estava morta!

Conciliadora, Zulmira serenou de imediato o tom de voz.

 - Tendes razão, e agradeço-vos por isso. Mas não é necessário insinuar folguedos, ainda por cima com um almocreve.

Foi a vez de Mem se fingir ofendido. Contudo Ramiro não acreditou neles e permaneceu tenso, mordendo o lábio.


O Templário viria a confessar-me mais tarde que achava Zulmira uma mentirosa. Aliás julgava todas as mulheres mentirosas! A começar por Chamoa e a acabar naquelas mouras.

A sua estranha implicação com mulheres não passara. Pelo contrário parecera agravar-se.

Naturalmente, as mouras também não gostavam dele, e a embirração ainda mais se agravou quando Ramiro convenceu o alcaide de Coimbra de que elas eram um perigo evidente para a cidade, e que por isso deviam ser fortemente vigiadas.

Além das mouras, o principal prejudicado desta situação foi Mem que se enamorara de Zulmira e de Zaida. Tal como a paixão entre Afonso Henriques e Chamoa inflamou os maiores desastres no Condado, também o que nasceu entre o almocreve e as mouras iria precipitar muita desgraça.

Todas as paixões proibidas têm a estranha e perturbadora beleza dos abismos.


Site Meter