Eu era bonita, sim, e esporreteada. |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 75
ÚLTIMO FRAGMENTO DA NARRATIVA, NA QUAL – DURANTE A LONGA
VIAGEM DE ÓNIBUS-LEITO, DA CAPITAL DE SÃO PAULO DA BAHIA – TIETA RECORDA E
CONTA À BELA LEONORA CANTARELLI EPISóDIOS DE SUA VIDA
- Quando conheci Filipe, ele não era ainda comendador e eu ainda era
Tieta do Agreste, meu nome no sertão, na cidade da Bahia, no Rio de Janeiro e
em meus começos em
São Paulo. Filipe tinha voltado da Europa.
Filipe Camargo do Amaral, aos cinquenta anos, considerava-se realizado
como homem de negócios, empresário vitorioso em todos os sectores onde actuava.
Realizado também como paulista, cidadão e homem. Na revolução de 32, não
aceitou o cargo burocrático no gabinete do Governador, providenciado pela
família tradicional, marchou para a frente do combate, praça voluntária e, ali
chegando, foi imediatamente promovido a 1º Tenente, ajudante-de-ordens, um
Camargo do Amaral não pode ser soldado raso.
Terminou Major no Estado-Maior
Revolucionário, redigindo manifestos e proclamações. Nascera rico fazendeiro do
café, já com fartas colheitas e quatrocentos anos de cidadania ou mais, se for
considerado o sangue indígena, algumas gotas, o suficiente para dar-lhe
condição nativa, autêntico bandeirante.
Por conta própria tornou-se industrial, um génio para ganhar dinheiro,
presidente de empresas, consórcios, bancos, entupido de acções e dividendos.
Rápida passagem pela política. Deputado, em 1933, ao regressar do cómodo exílio
em Lisboa, não disputou a reeleição. Faltava-lhe paciência para os inócuos
debates, para as sessões chatas e, quanto à astúcia, preferia empregá-la melhor
do que em trincas eleitorais.
Assim o fez, crescendo em riqueza e sabedoria.
- Filipe sabia viver e me ensinou. Eu era uma cabrita andeja, com ele
virei madame. Aprendi com Filipe o valor do dinheiro mas aprendi também que a gente
deve ser dono e não escravo do dinheiro.
Sabedoria para ele era viver bem. Não se deixar aprisionar pelos
negócios.
Música, quadros, livros, boa mesa, boa adega, viagens, mulheres.
Conheceu os cinco continentes. Europa e Estados Unidos de cabo a rabo, pagou
montes de mulheres – mulher a gente paga de qualquer forma, o melhor é pagar
com dinheiro, fica sempre mais barato e não dá aporrinhação.
Bom chefe de
família, vivendo em paz com a esposa, escolhida no seio da exportação do café,
em clã de muita linhagem e maior pecúnia, doido pelos filhos: um com ele,
lugar-tenente nas empresas, o outro irremediavelmente ancorada num laboratório
de pesqui sas científicas da
universidade norte-americana onde estudara e permanecera, casado com gringa.
Felipe não tinha queixas da vida.
- Foi ele quem teve a ideia do Refúgio muito antes de me conhecer. O
primeiro nome era francês.
A ideia propriamente não fora dele. Com um pequeno, seleccionado grupo
de senhoras do mesmo padrão económico e de idênticos altos ideais, financiara
benemérito projecto de diligente e encantadora amiga, Madame Georgette.
Um dos filhos de Felipe estudara nos Estados Unidos, o outro em Oxford,
na Inglaterra. Ele, porem, preferia la douce France, familiar de Paris, guloso
de vinhos, queijos e fêmeas.
Quanto mais conheço outras cidades, mais gosto de
Paris, dizia. Madame Georgette transportara para a capital paulista algumas
especiarias francesas, condimentadas, picantes, às quais somara o melhor
produto nacional. Perita na escolha das gentis parceiras.
O projecto referia-se ao estabelecimento de reservadíssimo rendevu a
ser frequentado apenas pelos reis do latifúndio e da indústria – terras e
fábricas, financeiras e bancos – pelos maiores da política, ministros,
senadores; grandes das letras e das artes, excepcionalmente, para dar lustre à
casa.
Experiente e capaz, madame Georgette superou-se. Assim nasceu o Nid
d’Amour onde os fatigados, nervosos senhores, repousavam em braços jovens, em
colos perfumados, em dóceis e eruditas jeunes-filles.
Quando Filipe chegava de viagem, vinha farto de brancas, tinha um
pendor pela cor morena, assim tostada igual à minha – minha bisavó foi negra
escrava. Cabrita montês, queimada de nascença, fui-lhe servida com champanhe.
Madame Georgette conhecia o gosto de Monseigneur Le Prince Felipe –
somente de príncipe o tratava – guardara para ele pitéu digno de tão fino
paladar: Tieta do Agreste, morena de cabelos anelados, curtida no sol do
sertão, educada nos bordéis dos povoados pobres, a flor da casa.
- Por que se engraçou de mim, não sei. O certo é que não me deixou
mais.
- Que homem não se engraçaria, Mãezinha? Além de bonita devia ser
saliente, uma brasa, imagino.
- Eu era bonita, sim, e esporreteada. Falava pelos cotovelos, ria à toa
e quando topava parceiro de respeito, não tinha rival na cama, te garanto. Não
sei se gostou de mim por isso ou porque acalentei seu sono.
O que prendeu Felipe e o fez constante? O conversê de moça a contar
coisas do burgo e do sertão, da vida pacata, das cabras saltando sobre as
pedras, do banho no rio? A competência? Ou o calor a desprender-se dela, a vida
intensa e o gosto de viver?
No quarto, com Tieta, sentiu-se jovem. Não mais o
gasto senhor, refugiado no rendevu para repousar de afazeres com prostitutas de
alta classe, a ser usada uma vez, quase nunca repetida.
Madame Georgette
mantinha vasto e renovado estoque, inumeráveis telefones no caderno azul, todas
seleccionadas no capricho. Ficara assombrada quando Le Prince Felipe pediu de
novo a cabrita sertaneja e, depois de umas quantas vezes a, reservou – não fará
mais a vida, fica por minha conta, à minha disposição.
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