Não diga tia, diga Tieta. |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 83
Nos problemas de álgebra, nas páginas impressas, saltavam
inteiros os seios entrevistos pela metade no decote do penhoar; os fios de pêlo
apontados pelo irmão na fresta do biqui ni
alongavam-se rio a dentro, atando pulsos e tornozelos trazendo-o de retorno às
pedras onde ela descansava, descontraída, as pernas abertas, inocente de tanta
cobiça e ousadia.
Até mesmo durante o sagrado sacrifício da missa, a fumaça do
turíbulo ao evolar-se traçava a curva e o balouço da bunda, redonda, solta,
morena, percebida sob a curva da camisola.
Labutara nas noites inqui etas,
a adivinhar devassidões quando se esforçava por enxergar no sonho castas
imagens, vidas santas, alegrias puras.
Antes de perder-se por completo ali, em Mangue Seco , esteve à
beira do pecado todas as noites, ora adormecido, ora acordado, e se jamais o
completou foi por não saber como fazê-lo.
Mal terminava as orações e cerrava os
olhos, ainda com o nome de Deus nos lábios e o pensamento na salvação da alma,
e já o amaldiçoado enchia a rede de seios e coxas, de bundas e pêlos, a tia
inteira e nua.
Nem os rogos, nem as preces, nem as promessas, nem as fugas.
Transtornado, abrira o livro santo na página da fuga para o Egipt o, conselho de Deus.
Montou no burro e se tocou no
rastro do padre Mariano para a Rocinha em vez de tomar a lancha para Mangue
Seco onde poderia vê-la quase desnuda na praia, acompanhá-la mar adentro,
salvando-a de morte certa quando a arrebentação da barra a estivesse afogando.
Heróico, lutaria contra as vagas, tomando-a finalmente nos braços, trazendo
para a praia o corpo inerte apertado de encontra o peito.
Montado no burro, fugira da tentação. De que adiantara? Durante todo o
percurso para a Rocinha ele a teve nos braços, apertada contra o peito, no
trote do animal. Ao roçar o cabeçote da sela, comprimira entre as coxas as
ancas da tia.
Débeis forças, vontade fraca, armas frágeis para enfrentar o poder e as
tramas do Cão. Para tentá-lo na beira do rio, Belzebu utilizara Peto; para
enviá-lo a Mangue Seco, por mais incrível possa parecer, servira-se da mãe,
devota e rígida.
Ele deveria ter-se oposto, discutindo, alegando a hora tardia,
fingindo-se doente. Não o fez. A mãe não precisou de repetir a ordem: saíra
correndo em busca de Pirica para contratar o barco.
Compreendeu que o Tinhoso
escolhera Mangue Seco para local do crime e não obstante para ali partira de
livre vontade. Durante a travessia dava pressa a Pirica apesar de saber que se
de lá desembarcasse, estaria perdido.
Assim aconteceu: em
Mangue Seco o Cão o derrotara e possuíra.
Os dedos rumam para o queixo, deixando na boca um gosto de polpa
fresca. As palavras, arrancadas do estômago, cortam o pulmão estranguladas:
- Estou condenado e levo a tia comigo para o fogo do inferno.
Sou ruim demais, me perdi e arrastei a tia.
A mão se espalma, toda ela fogo, vinda do queixo para o pescoço. Na
hora do pecado, até as labaredas são deleite, ninguém sente as dores das
queimaduras. Mas outro é o forno do inferno, outro e eterno.
- Me leve, sim, cabrito. Novinho como os que eu carregava ao colo.
Viúva honesta, ele a fizera renegar o recato e a virtude da cativa
condição, manchar a memória do marido, enlouquecer a ponto de dizer coisas
assim, sem pé nem cabeça, murmurar frases sem nexo, aberta em riso de
contentamento, não se dando conta do mal praticado, indiferente ao castigo.
Ele fora o único culpado mas a condenação atingia os dois, sobre a
cabeça da tia cairá igualmente a cólera de deus. Sobre as duas almas que não
souberam resistir aos corpos vis, à carne podre. Ele, o único culpado.
A tia
lhe dissera que fosse embora, se qui sesse,
apontava para baixo dos cômoros, ele não qui s,
preferiu ficar. Consciente de que, se ficasse, iria desrespeitá-la, ofender a
Deus, prevaricar, entregando-se de vez a Satanás, servindo-lhe de agente na
degradação da alma da viúva, responsável por sua perdição.
- Quem me dera morrer.
- Nos meus braços.
A mão desce dos ombros para o peito. Ai, tia, não. Não vê que o demónio
está solto, sobrevoa dunas e mar, morcego imenso a tapar a lua, a impor a noite
negra e fria?
O tentador está ali, presente, como sempre esteve desde o momento
em que a tia surgira na porta da marinete de Jairo. Fora ele, o demónio, que
falara pela boca de Osnar comparando-a a uma fruta madura, sumarenta.
Naquela
hora começara o combate, lá mesmo perdido. Perdido a cada momento mais, nos
passos nocturnos soando no corredor, nas rendas esvoaçantes do negligê, no biqui ni minúsculo, na minúscula camisola, nas mãos
untadas de creme, nas palavras truncadas do padre-nosso, nos sonhos prenhes de
desejo quando a tinha nua junto de si, na rede e não sabia o que fazer.
Agora
sabe e por isso pagará durante a eternidade. Pagarão os dois, o culpado e a
vítima, ele e a tia. Quem sabe, Deus é justo, terá piedade da tia e lhe
reduzirá a pena a um tempo de purgatório.
Por mais longo que seja, ainda que
estenda por milhões de anos, é tempo e não eternidade, tem limite e fim. Um dia
a sentença termina, liberta-se o condenado, mas as penas do inferno, essas não
acabam jamais. Nunca jamais, repete a cada segundo o relógio do inferno. Assim
contava Cosme ao falar do castigo eterno.
- Deus é bom e sábio, terá piedade, sabe que a tia não teve culpa.
Cresce o riso alegre e inconsciente, a mão desce pelo peito agoniado.
- Não diga tia, diga Tieta.
A mão no peito sufocado de vergonha, de remorso, roto de medo; como
fitar a face de Deus na hora do juízo final? A mão acalma o pesadelo,
transforma os sentimentos, desata o nó, rompe a treva, mas não apaga as
fogueiras da ira celeste pois toda ela, palma, punho e dedos, é brasa ardida,
calor divino.
Divino? Assim Satanás engana e condena os homens. Esse calor
divino se transformará em dor insuportável nas profundas do inferno, consumindo
lenta e eternamente os pecadores.
- Só eu tenho culpa, Deus há-de perdoar-lhe, tia.
- Tia, não. Tieta, sua Tieta.
Como não percebera a voz de Deus na voz da tia apontando-lhe a descida,
o caminho certo, o sendeiro a conduzi-lo à salvação, ao sacerdócio, ao paraíso?
Paraíso? Qual deles? A mão conduz ao paraíso: ainda há pouco ele
enxergara a beleza, a doçura do céu em cada detalhe do corpo exposto ao luar.
A
mão brinca com os cabelos nascendo no peito jovem e másculo. O Major
orgulhava-se do tronco cabeludo, peito e costas, prova de macheza. Um macho, o
pai. O filho, castrado pelo voto feito pela promessa da mãe, impedido. Mas o
demónio o levara a levantar-se contra a lei, despertara-lhe a carne morta,
pervertendo-o.
Fizera do mancebo casto, que desconhecia desejos e maus
pensamentos, macho impuro sem controle sobre o corpo e a alma, um bode.
Não apenas: utilizara-o para conqui star
a tia, perdê-la, condená-la.
- O purgatório dura uns tempos e acaba, tia. A culpa é minha; Deus é
justo, não mandará a tia para o inferno.
- Cabrito tolo, sou cabra velha. Me chame de cabra, minha cabra.
Jamais, mesmo se qui sesse,
nem sequer na hora do pecado, quando a cabeça não pensa e a boca geme e grita.
Cabra dissera Osnar, voz do demónio, quando a vira deslumbrante na porta da
marinete de Jairo, acrescentando indecente comentário sobre a fartura do ubre,
o Imundo. E ele? Onde mergulhara a cabeça, pousara os lábios, onde, desvairado,
mordeu?
- Me perdoe, tia. Jure que me perdoa.
- Diga Tieta.
Na barriga de músculos rijos navegam os dedos em descoberta. O dedo
mínimo enfia-se no umbigo, faz cócegas, a brasa cresce em labareda, consumindo
o pecado, cobrindo o crime, acendendo o luar:
- Quero lhe dizer, tia…
- Tieta.
- Quero lhe dizer que mesmo tendo de pagar durante a eternidade no fogo
do inferno, ainda assim…
- Diga, meu cabrito…
- … ainda assim, não me arrependo. E se o castigo pudesse ser pior,
mesmo assim…
- Diga…
- … mesmo assim eu queria…
Onde a mão? A chama queima da ponta dos pés à ponta dos cabelos, percorre
o corpo, a testa lateja, abre-se a boca, cresce o Cão.
- Queria o que, cabrito? Me diga…
- Estar aqui com a tia.
- Tieta.
A mão procura, encontra, apalpa, empunha. Desmedido Demónio.
- Tieta, não me arrependo, ai não, Tieta!
- Diga cabra, meu cabrito.
Onde estão as trevas e o inferno e o temor de Deus? Sob o luar, o
paraíso se abre para o Cão, estreita porta de mel e rosa negra. Vale o inferno
e muito mais. Vem, meu cabrito! Ai, cabra, minha cabra, sou bode inteiro, em fogo me consumo.
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