Não me chame tia, chame Tieta, a tua Tieta... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 82
INTERMEZO
Já ia distante a lua no caminho da África, pejada de ais de amor,
quando por fim houve pausa e respiração.
Desamarradas as coxas, separaram-se a
vida e a morte, cada uma para seu lado, deixando de ser uma única coisa o acto
de morrer e de ressuscitar.
Antes compunham um corpo único, um só foguete
explodindo no alto dos céus, desfazendo-se em luz sobre as vagas do mar. Antes,
a noite de luar foi ao mesmo tempo dia de sol, sol e lua, dia e noite
acontecendo juntos sem distâncias nem intervalos.
Quando por fim houve pausa e respiração, desapareceram o sol e a lua,
as trevas cobriram o mundo, a noite despiu-se de calor e brilho, fez-se fria
inimiga, ouviu-se na ressaca do oceano contra as dunas, na insana ventania
transportando areia, a acta de acusação e a sentença.
Mais além da vida, mais
além da morte, ele pôde medir a extensão do crime. Para o castigo não havia
medida humana, não se mede a eternidade.
Num esforço que lhe rompeu a garganta e o peito, reencontrou o
exercício da palavra:
- Ai, tia! O que foi que a gente fez? Que é que eu fiz?
Um dia, em voto solene, jurara castidade, consagrara-se a Deus.
Prometera renegar os prazeres da carne, casto filho de Maria e de Jesus. Traíra
o voto.
- Me desgracei e desgracei a senhora, tia. Me perdoe…
Escuta sons de riso, em surdina, nascente de água em meio à tempestade.
Mão de areia e vendaval toca-lhe a face culpada, dedos de unhas longas
roçam-lhe os lábios, contendo o soluço: um homem não chora e a partir dali, do
sucedido que era ele senão um homem igual aos outros, cravada no coração a
marca do pecado? Igual aos outros?
Pior, pois os demais não tinham assumido
compromisso e o sangue de Cristo derramado na cruz os resgatara a todos, até ao
fim dos séculos.
Mas ele fizera voto, prometera, jurara, assumira compromisso.
Traíra a confiança de Deus. No negrume enxerga as chagas se abrindo em pus no
corpo perverso, a lepra. Dedos pressionando a pele dos lábios impedem o grito e
o espanto.
- Tia, só quando houver gente, tolo. Não tendo, sou Tieta, tua Tieta. –
Está rindo a infeliz, inconsciente, condenada por ele às penas do inferno.
Rindo, alegre, não se dá conta do horror que cometeram.
O demónio o possuíra, o mais perigoso, o mais sagaz, e subtil, o pior
de todos, o demónio da carne. Não se contentando em levá-lo à perdição,
utilizara-o como instrumento para tentar e corromper a tia, para perverter
viúva honrada, fiel à memória do marido, e transformá-la em fêmea enlouquecida,
animal em cio, a gemer e a ganir, a berrar como as cabras nos oiteiros de
Agreste.
Ai, tia, que desgraça! A mão percorre os lábios, as unhas arranham a
pele, ameaçando pausa e distância.
Possuída pelo cão, ela também. Excomungada por culpa dele, exclusiva,
que tanto lhe devia: gratidão, respeito e puro amor de sobrinho e protegido.
Não lhe mandara presentes de S. Paulo, não trouxera vara de pesca e molinete,
não lhe dera dinheiro, camisa nova, pijamas que a mãe guardara para o
seminário, não ofertara imagem e ostensório à Igreja, piedosa criatura?
Alegre,
informal, arrebatada, sim, mas generosa ovelha do rebanho de Deus, como a classificara
padre Mariano. Alma pura, inocente coração, digna da estima do Senhor, da
recompensa divina, proclamara o padre no sermão, durante a missa. Merecedora de
todo o respeito e muita gratidão, para pagar o terno afecto, a bondade, as
generosa dádivas.
A mãe recomendava cuidasse da tia, ficasse às suas ordens, fosse seu
amigo. Por acaso obedecera? Buscara aproximá-la ainda mais de Deus e da Igreja
como era a sua obrigação de sobrinho seminarista?
Falara-lhe dos santos e dos
milagres, contara os prodígios da Virgem e do Senhor, descrevera as maravilhas
do reino dos céus? Nada disso cumprira.
Ao contrário, pusera-se às ordens de
Satanás na conqui sta da alma da tia,
soletre instrumento do maldito. Antes servo de Deus, anjo consagrado, depois
escravo de cão, obediente comparsa, cúmplice activo, anjo decaído.
- Me perdoe, tia…
A mão se alonga, cobre a boca inteira, a palma comprimida sobre os
lábios, trincando os dentes.
- Não diga tia, diga Tieta.
Depois da morte próxima do leproso – primeira demonstração da ira
divina – o castigo eterno, as chamas do inferno, para todo o sempre, sem apelo,
sem repouso, sem intervalo, sem direito à contrição, sendo demasiado tarde para
o arrependimento. Arrependimento? A mão rodeia a boca, as unhas raspam de leve.
No inferno para toda a eternidade, a carne pecadora e podre queimando e
jamais acabando de queimar – salva ou condenada, a alma é imortal.
Ouve o riso
suave, nascido da ignorância, riso de quem não sabe da violência da cólera de
Deus. Por detrás do manso balido satisfeito, ele escuta a gargalhada do diabo,
sinistra, vitoriosa, insultante: duas almas ganhas de uma vez, numa só parada,
duas a mais para a prática do pecado e para as chamas do inferno, boa colheita.
Tantos dias, tantas noites de trabalho. Porque ele lutara e resistira;
com pequenas forças e armas mínimas; não possuía a estatura dos santos
verdadeiramente dignos de servir a Deus, fortaleza da lei, dos mandamentos.
Ainda assim resistira, lutara, erguera trincheiras: na banca, curvado sobre os
livros, nas águas do rio mergulhando quando Peto, instruído pelo cão,
dirigia-lhe a vista na bacia de Catarina; nas orações, antes de deitar-se na
rede; em rogo e promessa, na missa – se a Virgem o salvasse, comprometia-se a
dormir sobre grãos de milho durante todo o ano lectivo.
Trincheiras conqui stadas, destruídas uma a uma pelo Coisa Ruim.
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