(Domingos Amaral)
Episódio Nº 206
De repente, deu uma
gargalhada, enquanto Paio Soares estremecia de receio. A seu lado, Ramiro, sentiu
que a vida de seu pai estava por um fio.
Voltando a virar-se para
eles, o Trava fixou-o e perguntou-lhe porque estava ele ali, ao que o rapaz
respondeu que viera despedir-se do pai. Com o seu habitual sorriso cínico
estampado na cara, Fernão Peres acrescentou que julgava que o jovem templário
tinha vindo tentar convencer seu pai a revelar, finalmente, o paradeiro da
famosa relíqui a, que mestre Gondomar
procurava com tanto afã, antes de morrer.
Nem Paio Soares nem Ramiro o
esclareceram e então o trava disse:
- Se vosso pai me contasse os seus segredos,
talvez, o deixasse seguir para Norte.
Pobre Paio Soares. Estava
dividido entre duas traições. Ou traía o Trava e Dona Teresa, arriscando a
vida; ou traía a promessa antiga feita ao conde Henrique, entregando a relíqui a ao Trava. Fosse como fosse, perderia Chamoa.
Cercado e torturado, decidiu
nem falar nem fugir.
Talvez o meu grande amigo
Afonso Henriques tenha cometido um gigantesco erro ao provocá-lo. Se isso não
tem acontecido, talvez Paio Soares tivesse agido de forma diferente.
Qualquer vida é sempre cheia
de palavras talvez, de cruzamentos nas estradas, de escolhas. Mas serão as
nossas escolhas independentes das nossas paixões?
Porque haveria de Paio
Soares de falar ou de fugir?, se podia perder Chamoa?
Ela é que era a sua relíqui a sagrada.
Tui, Junho de 1128
Quando me disseram que
Chamoa, Zulmira e Zaida se banhavam nuas no rio Minho e dormiam juntas na cama,
julguei tratar-se de uma lenda tola, mas um dia minha esposa Maria confirmou-me
a verdade.
O espírito dos haréns de
Córdova chegara a Tui, apesar da oposição de Elvira Peres de Trava e de Fátima
que por diferentes razões não aprovavam amizades tão intensas.
Chamoa podia ser uma relíqui a para o marido. Mas, tal como a verdadeira, era
perigosa e fatal.
No mesmo local onde na
infância costumava trazer as filhas para brincar, Elvira Peres de Trava cismava
em silêncio nas imprevisibilidades e durezas do amor.
À sua frente, sentada numa
manta, estava Chamoa cujo recem-nascido dormitava numa alcofinha, enquanto que
o primogénito com pouco mais de um ano, gatinhava entre as ecudelas,
mordiscando pequenos pedaços de pão.
Um dia de sol esplendoroso
iluminava Tui, e ao longe via-se um rio Minho bastante calmo, fundindo-se na
foz com um céu sem nuvens, o que era uma raridade naquelas paragens, sempre
fustigadas pelas nortadas.
Fazia calor, cheirava a
alfazema e fosse por isso ou pelo vinho que já bebera, Elvira sentia-se
melancólica.
- Que se passa, minha mãe? –
perguntou Chamoa.
A seu lado, também sentadas
na manta, encontravam-se Zulmira, Zaida e Fátima, as três com vestidos
comprados a Mem e com véus da mesma cor a cobrirem-lhes a cabeça.
Ao ouvir a pergunta de
Chamoa, Zulmira suspirou:
- Nestes dias quentes sinto a falta de um
homem.
Com um sorriso triste Elvira
Peres de Trava começou a falar sobre o amor que considerou um desencontro
permanente e listou vários exemplos.
Ela julgava amar Gomes
Nunes, mas desencantou-se ao descobri-lo montado numa padeira, tendo depois
namorado outro homem, que raramente via.
Quanto a Zulmira amara Hixan
de His Abi Cherif, que morrera, e depois Taxfin, que tivera o mesmo destino.
Fátima, era sabido, amava
perdidamente Abu Zakaria, mas mesmo sendo correspondida, estava impedida de o
ver, ali exilada em Tui.
Já Chamoa procriara dois
rebentos de Paio Soares, mas o seu coração palpitava por Afonso Henriques, que
por sua vez não tinha ninguém para amar, embora filhasse Raimunda.
- Nem os homens encontram o amor – constatou
Elvira.
Seu marido, Gomes Nunes
preferia sempre as serviçais de Tui; o pobre Paio Soares nem sabia que era
chifrudo, enquanto o bastardo dele, o desgraçado Raimundo, desmaiava de cada
vez que via Chamoa.
Os únicos felizes são a
Maria e o Lourenço. E a Zaida que com todos brinca não amando nenhum! Exclamou
Elvira.
A visada riu-se, mas Chamoa
discordou da mãe.
- Dona Teresa e o tio Fernão
ainda agora tiveram segunda filha!
Elvira defendeu, então, que
para se manter, o amor precisava de que os interesses não só se conjugassem,
mas também que se concretizassem. Sem um filho varão, Dona Teresa e o Trava
começariam a afastar-se.
Desapontada, rematou:
- Comigo e com vosso pai passou-se o mesmo.
Derrotada pela argumentação
pessimista da mãe, Chamoa arriscou:
- Talvez o amor seja um privilégio só de
alguns...
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