segunda-feira, março 07, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)


Episódio Nº 206




















De repente, deu uma gargalhada, enquanto Paio Soares estremecia de receio. A seu lado, Ramiro, sentiu que a vida de seu pai estava por um fio.

Voltando a virar-se para eles, o Trava fixou-o e perguntou-lhe porque estava ele ali, ao que o rapaz respondeu que viera despedir-se do pai. Com o seu habitual sorriso cínico estampado na cara, Fernão Peres acrescentou que julgava que o jovem templário tinha vindo tentar convencer seu pai a revelar, finalmente, o paradeiro da famosa relíquia, que mestre Gondomar procurava com tanto afã, antes de morrer.

Nem Paio Soares nem Ramiro o esclareceram e então o trava disse:

 - Se vosso pai me contasse os seus segredos, talvez, o deixasse seguir para Norte.


Pobre Paio Soares. Estava dividido entre duas traições. Ou traía o Trava e Dona Teresa, arriscando a vida; ou traía a promessa antiga feita ao conde Henrique, entregando a relíquia ao Trava. Fosse como fosse, perderia Chamoa.

Cercado e torturado, decidiu nem falar nem fugir.

Talvez o meu grande amigo Afonso Henriques tenha cometido um gigantesco erro ao provocá-lo. Se isso não tem acontecido, talvez Paio Soares tivesse agido de forma diferente.

Qualquer vida é sempre cheia de palavras talvez, de cruzamentos nas estradas, de escolhas. Mas serão as nossas escolhas independentes das nossas paixões?

Porque haveria de Paio Soares de falar ou de fugir?, se podia perder Chamoa?

Ela é que era a sua relíquia sagrada.



Tui, Junho de 1128


Quando me disseram que Chamoa, Zulmira e Zaida se banhavam nuas no rio Minho e dormiam juntas na cama, julguei tratar-se de uma lenda tola, mas um dia minha esposa Maria confirmou-me a verdade.

O espírito dos haréns de Córdova chegara a Tui, apesar da oposição de Elvira Peres de Trava e de Fátima que por diferentes razões não aprovavam amizades tão intensas.

Chamoa podia ser uma relíquia para o marido. Mas, tal como a verdadeira, era perigosa e fatal.


No mesmo local onde na infância costumava trazer as filhas para brincar, Elvira Peres de Trava cismava em silêncio nas imprevisibilidades e durezas do amor.

À sua frente, sentada numa manta, estava Chamoa cujo recem-nascido dormitava numa alcofinha, enquanto que o primogénito com pouco mais de um ano, gatinhava entre as ecudelas, mordiscando pequenos pedaços de pão.

Um dia de sol esplendoroso iluminava Tui, e ao longe via-se um rio Minho bastante calmo, fundindo-se na foz com um céu sem nuvens, o que era uma raridade naquelas paragens, sempre fustigadas pelas nortadas.

Fazia calor, cheirava a alfazema e fosse por isso ou pelo vinho que já bebera, Elvira sentia-se melancólica.

- Que se passa, minha mãe? – perguntou Chamoa.

A seu lado, também sentadas na manta, encontravam-se Zulmira, Zaida e Fátima, as três com vestidos comprados a Mem e com véus da mesma cor a cobrirem-lhes a cabeça.

Ao ouvir a pergunta de Chamoa, Zulmira suspirou:

 - Nestes dias quentes sinto a falta de um homem.

Com um sorriso triste Elvira Peres de Trava começou a falar sobre o amor que considerou um desencontro permanente e listou vários exemplos.

Ela julgava amar Gomes Nunes, mas desencantou-se ao descobri-lo montado numa padeira, tendo depois namorado outro homem, que raramente via.

Quanto a Zulmira amara Hixan de His Abi Cherif, que morrera, e depois Taxfin, que tivera o mesmo destino.

Fátima, era sabido, amava perdidamente Abu Zakaria, mas mesmo sendo correspondida, estava impedida de o ver, ali exilada em Tui.

Já Chamoa procriara dois rebentos de Paio Soares, mas o seu coração palpitava por Afonso Henriques, que por sua vez não tinha ninguém para amar, embora filhasse Raimunda.

 - Nem os homens encontram o amor – constatou Elvira.

Seu marido, Gomes Nunes preferia sempre as serviçais de Tui; o pobre Paio Soares nem sabia que era chifrudo, enquanto o bastardo dele, o desgraçado Raimundo, desmaiava de cada vez que via Chamoa.

Os únicos felizes são a Maria e o Lourenço. E a Zaida que com todos brinca não amando nenhum! Exclamou Elvira.

A visada riu-se, mas Chamoa discordou da mãe.

- Dona Teresa e o tio Fernão ainda agora tiveram segunda filha!

Elvira defendeu, então, que para se manter, o amor precisava de que os interesses não só se conjugassem, mas também que se concretizassem. Sem um filho varão, Dona Teresa e o Trava começariam a afastar-se.

Desapontada, rematou:

 - Comigo e com vosso pai passou-se o mesmo.

Derrotada pela argumentação pessimista da mãe, Chamoa arriscou:

 - Talvez o amor seja um privilégio só de alguns...

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