Elisa e Astério, o marido. |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO
Nº 98
Há algum tempo, no começo das prolongadas negociações
para a aqui sição da casa de dona
Zulmira, a cunhada propusera que, realizada a compra, ali fossem morar juntos
os dois casais, o Velho e a mãe Tonha, ele e Elisa: na residência vasta e
confortável cabiam os quatro e sobrava espaço.
A ideia não o seduzira,
agradando ainda menos a Elisa. Tieta ouvira as razões da recusa e com elas
concordara. Diante disso, Astério, ficara à espera de uma palavra da caridosa
parenta referente à aqui sição de
casa própria para a mana mais nova a quem dava mostras de tanta estima.
Espera
vã jamais a cunhada voltara a falar com eles sobre moradia. Somente na véspera,
Astério descobrira o motivo desse silêncio. Ao voltar do bilhar, à noite,
comentando a escritura a ser assinada no dia seguinte, a compra da casa de dona
Zulmira, finalmente decidida, Astério previra, esperançoso: quem sabe, agora
vai chegar a nossa vez.
Em resposta ouvira a espantosa revelação, tomara
conhecimento dos alarmantes planos de Elisa. A esposa lhe explicara dever-se a
reserva de Antonieta ao desinteresse demonstrado por ela, Elisa, a respeito de
casa no Agreste. Do meio dos lençóis, a voz fustigara, decidida, insensível,
quase agressiva:
- Eu disse a Tieta que não queria ter casa própria em Agreste. Se ela qui ser fazer alguma coisa por nós dois que nos leve
para São Paulo, arranje para você um bom emprego numa das fábricas, nos ceda um
quarto em seu apartamento, é um apartamento enorme, duplex. Duplex quer dizer
que tem dois andares, um sobrado.
Astério respondera com um gemido: a dor no estômago ressurgindo,
repentina e violenta. As palavras de Elisa soaram-lhe como um cantochão de
funeral. Rasgaram-lhe as entranhas. Emprego em São Paulo , no escritório
de uma indústria? Monstruosa perspectiva!
Sair da vida tranqui la de Agreste para enfrentar a correria da cidade
imensa, sentar-se diante de uma escrivaninha a fazer contas ou a anotar
relatórios, das oito da manhã às seis da tarde, sem liberdade de ir e vir na
hora que bem entendesse, sem amigos, sem o bar de seu Manuel, sem a mesa de
bilhar, desgraça maior não podia ameaçá-lo.
Em Agreste, a vida do casal
decorria na pobreza, é verdade, a loja mal dava para o essencial, quando dava,
mas com a ajuda de Antonieta iam atravessando sem problemas, havia o suficiente
para a casa, a comida e ainda sobrava para o cinema e para as revistas de
Elisa.
Ademais, à excepção de meia dúzia de privilegiados, todos na cidade eram
remediados ou pobres e a vida transcorria sem percalços, na maciota. Tinha o
moleque para ajudá-lo na loja, Elisa tinha a moleca para ajudá-la na casa.
Apenas o estômago o aperreava todas as vezes que o movimento comercial
decrescia e um título a pagar começava a contar juros mas o médico na Bahia,
lhe garantira não ser câncer mas sim nervosismo.
Fora disso, vivia satisfeito, na boa companhia dos camaradas, das
partidas de bilhar Brunswick, com as apostas, as disputas, as vitórias, taco de
ouro, a prosa agradável, poucos afazeres e a mulher bonita, a mais bonita de
Agreste, à espera na cama, à disposição para as noites em que se punha nela,
sempre na mesma clássica disposição, quase respeitosamente, como devem praticar
tais actos esposos que se prezem.
Quando solteiro, fora freguês assíduo da pensão de Zuleika Cinderela,
amarrando rabichos, sempre por mulher de traseiro atrevido, de ancas bem
torneadas, vistosas. Na cama não recusava variações; constando inclusive ser
por demais chegado a comer bunda de mulher; rapariga que dormisse com ele se já
não sabia, logo ia ficar sabendo dessa sua preferência.
Quando ele aparecia na
sala da pensão, onde dançavam, corria a voz entre as pequenas: segurem o cu,
Astério está na casa. Ao que consta, não se reduzira a subilatórios de
mulheres-da-vida, descadeirando igualmente várias solteironas, tendo merecido
em priscas eras o apelido de Consolo do Fiofó das Vitalinas.
Casado, jamais lhe passara pela cachola possuir Elisa senão como
conveniente, no buraco próprio e com decência, ele por cima, ela por baixo,
papai e mamãe, como classificam as putas na pensão, posição de fazer filhos, ou
seja, própria para esposo e esposa.
Tampouco lhe aflorara o pensamento montá-la
por detrás, indo-lhe às traseiras magníficas, ancas de égua, sem igual em toda
a redondeza. Não que lhe faltasse vontade: fosse ela rapariga ou moleca,
roceira ou solteirona, e ele não perderia pitéu assim apetitoso, aquela sumpt uosa bunda, motivo fundamental da paixão a
dominá-lo, levando-o a noivado e casamento.
Mas esposa não é para descaração, a
mulher da gente deve ser respeitada, posta entre as santas, num altar. Quando
muito, uma vez na vida ou na morte, na hora do gozo, elevando-o ao infinito,
dando-lhe nova qualidade, Astério corre a mão nas ancas da mulher, em furtivo
agrado.
Leitora de revistas nas quais são contados os feitos dos galãs da
rádio, televisão, cinema, Elisa ressente-se do aparente desinteresse sexual do
esposo, de fornicação escalonada, burocrática – burocrata do sexo, assim a
fogosa actriz o ilustre comediante do qual vinha de se desqui tar, em sensacionais declarações prestadas à
revista Amiga – da maneira única, repetida, sem as variações tão badaladas.
O
próprio Astério, de quando em vez, relatando a última de Osnar ou de Aminthas,
de Seixas ou de Fidélio se refere a outras curiosas formas e maneiras, sobre as
quais tudo sabe dona Carmosina – ah!, infelizmente apenas na teoria, minha
Elisa, quem me dera a prática! Quem dera também a Elisa, talvez por isso
injusta com o marido.
Desinteresse da parte dele não existe e sim a convicção de que amor de
esposo e esposa tem de exercer-se, isento de arroubos, de maus pensamentos e de
extravagâncias, respeitoso.
Represado, Astério contenta-se em ser proprietário
daquele rabo, de espiá-lo quase às escondidas, enquanto Elisa muda a roupa, de
sentir-lhe a proximidade na cama. Digno, contido esposo.
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