(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 94
CAPÍTULO ONDE TIETA BUSCA DEFINIR O AMOR E NÃO CONSEGUE
Tieta deixa os namorados na porta da rua, sozinhos, livres para a despedida. Da sombra do corredor, porém, espicha o olho para ver o que se passa, onde as mãos vão parar, a força dos beijos, os lábios vorazes, as línguas se enrolando, aqueles primeiros passos no caminho do resto.
Decepção completa e inqui etante. Viu apenas um roçar dos lábios de Ascânio
na face de Leonora, receoso e apressado, aqui lo
não era beijo coisíssima nenhuma, perdera o tempo a espionar o mais completo e
acabado par de idiotas.
Da porta, onde demora até perde-lo de vista, Leonora
acena longo adeus, certamente respondido por Ascânio. Mau sinal, não agrada a
Tieta o rumo do idílio.
Leonora não correrá perigo de maior se terminarem, ela e Ascânio, na Bacia de
Catarina, em noite sem lua, por entre a penedia, no bem-bom.
Depois, é lavar o
xibiu bem lavado, acabou-se. Quando chegar a hora do retorno a São Paulo,
derramará algumas lágrimas de tristeza e saudade no ônibus de volta – c’est
finie la comedie, como dizia Madame Georgette e Madame Antoinette repete quando
enfrenta xodós e rabichos das meninas.
O perigo reside exactamente nos leves beijos medrosos, nesse namoro tonto, de
caboclo, que já não se usa mais.
Em Agreste, quando se namora assim, no
respeito, contendo os impulsos, é porque se tem em mira noivado e casamento.
Casamento, vida em agreste: ilusões absurdas, sonhos delirantes. Em tais casos,
não basta lavar a xoxota bem lavada. A separação custa duro sofrimento, não se
reduz a umas poucas de lágrimas no ônibus de volta.
Naquele dia, quando Tieta chegara de Mangue Seco, estuante de vida, vibrando de
animação ao falar do terreno e da casa de praia, mais magra, o corpo no ponto
exacto, Leonora caíra-lhe nos braços, murmurando-lhe ao ouvido, ansiosa:
- Preciso muito de conversar com você, Mãezinha.
Durante o dia não tiveram ocasião, porém, de ficarem sós. Perpétua sempre
presente, a adular a irmã, já não lhe regateava louvores. Antigo poço de iniqui dades, Antonieta passara a ser poço de Jacó,
misericórdia dos sedentos, turris ebúrnea.
Para gabá-la gastava até as poucas
expressões latinas que decorara em tantos anos de sacristia, antes reservadas à
exaltação do Senhor e dos santos sendo, turris ebúrnea exclusiva de Virgem
Maria. Agora, tudo era pouco para as virtudes de Tieta.
Na hora do almoço, a mesa completa: Zé Esteves e Tonha, Elisa e Astério, Peto a
pedir a bênção à tia, a regalar os olhos da carnação morena e farta.
Fazendo-lhe companhia na praia, quem estava bem situado para brechar até
fartar-se, para bispar os mínimos detalhes, era Ricardo; mas o idiota do irmão
desviava a vista para não enxergar, tirado a ermitão, a místico.
Devia estar de venda nos olhosem Mangue
Seco , o bobalhão; Deus dá nozes a quem não tem dentes,
queixara-se Osnar. Falou, pô!
Devia estar de venda nos olhos
À tarde foram a casa de dona Zulmira para confirmar o acerto e de lá ao
cartório, deixar os dados para a escritura e marcar o dia de assiná-la – quanto
antes melhor, pedira Tieta, com pressa de voltar a Mangue Seco.
As paredes da
choupana – assim designava a pequena casa da praia – começavam a subir, ela
curtia cada tijolo, cada pá de massa, em companhia do sobrinho contagiado pelo
seu entusiasmo.
De noite a sala de visitas se enchera: dona Carmosina, dona
Milú, Barbozinha, a tropa do bilhar escoltando Astério; Ascânio tinha aparecido
ao fim da tarde, ficava para jantar, não desgrudava de Leonora.
Também dona Carmosina anunciara necessidade imperiosa e urgente de longa
conversa reservada com Tieta. Marcaram para o dia seguinte. Amanhã sem falta! –
recordara a agente dos Correios ao despedir-se – mil coisas a comentar.
Com os
olhos apontava o par de namorados no sofá, distanciados um do outro pelo menos
um palmo, a paulista com um sorriso babado de admiração, ouvindo o discurso de
Ascânio sobre o radioso futuro de Agreste.
Ascânio, o último a sair, quando já Perpétua se recolhera: às seis em ponto,
ajoelhada na primeira fila, a devota ouve missa na Matriz, não pode dormir
tarde. Tieta abandona-os na porta, à vontade para a despedida apaixonada. Que
fracasso!
Leonora vem sentar-se na cama da alcova, enquanto Tieta desfaz a maqui agem. Abre o coração: apaixonada, que fazer?
Paixão roxa, não banal aventura, simples chamego, ela não era disso, Mãezinha a
conhecia, nesses três anos de refúgio jamais tivera um caso. Amo, pela primeira
vez.
- Me diga como agir, Mãezinha. Contar a verdade, não posso.
- Não pode mesmo, nem pense nisso. Só se ficasse doida e me tivesse ódio.
- Nunca pensei, como poderia contar? Mas estou desarvorada sem saber o que
fazer. Me ajude nesse transe, Mãezinha. Só tenho você no mundo.
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