(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 109
DA MEDITAÇÃO ESPIRITUAL
Ainda
adormecido, percebeu um rumor de risos alegres, som de violão e a melodia de um
acalanto tão bonito e apaziguante que nele se embalou, encontrando por fim
Tieta num extenso e tranqui lo
território de campo e praia, morros e dunas; nua com um bordão de flores
retirado do altar de São José, ela conduz irrequi etas
cabras, leva-as a pastar nas ondas.
Os pés alados não tocam a areia, tampouco
os de Ricardo. Dão-se as mãos e se encaminham, limpos de corpo e alma,
inocentes, para a mão de Deus aberta para recebê-los. Deus contem o mundo em
seu regaço: o campo, a praia, o mar, as cabras e os amantes.
Soam então as trombetas do juízo final, terna cantiga de ninar e o
profeta Jonas, velho pescador de contrabandos, eleva-se das águas, cavalgando
um tubarão, e proclama a verdade inconteste do Senhor: nenhum homem seja rico
ou pobre, velho ou moço, forte ou fraco, pode viver sem mulher, nem mulher sem
homem, é contra a lei de Deus
Ruem as muralhas do mar, quando Jonas, esticando
o cotoco do braço, ensina que o amor não é pecado, nem mesmo de tia com
sobrinho, de viúva com seminarista. Uma menina vem e orna de flores os cabelos
de Tieta e os de Ricardo e diz paz e amor, numa voz de passarinho.
Música e canto prosseguem além do sonho e, aos toques do dedo da
criança, Ricardo descerra os olhos. Recorda-se do desvario da noite do ciúme,
da desesperada prova de natação, da queda, exausto e nu, sobre a areia onde
dormira e ainda se encontra.
A menina lhe entrega a última flor, açucena do
campo; ele está cercado por uma roda de moças e rapazes, algumas crianças,
algumas crianças, todos igualmente nus e sorridentes, a cantar para ninar seu
sono.
Acalanto a aqui etar-lhe o
coração, uma canção estranha, portadora de paz e alegria, música celeste. O
violão que o magricela tange sobre o peito é harpa de anjo. Ricardo senta-se
devagar, sorri.
Não se importa de estar completamente nu, nem repara, admirado ou
curioso, com malícia ou cobiça, na nudez em torno, olha simplesmente e vê as
moças belas, algumas quase meninas de tão jovens, os rapazes barbudos ou
imberbes.
Cabelos compridos, por vezes rolando sobre os ombros, não eram assim os
cabelos de Jesus? Noutros, as crespas cabeleiras desabrocham em grandes flores
desfiadas ou em emaranhados ninhos de pássaros. A roda prossegue em canto e
dança, ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. Ricardo põe-se de pé.
Encontra-se completamente livre do medo, da servidão, do pecado. Na
barra da manhã, a dança e o canto, o sorriso, a tranqui la
face das moças e dos rapazes restituem-lhe a alegria e a paz perdidas.
Libertos do tempo, sem pressa e sem horário, cantam e dançam para ele
na atmosfera azul onde nasce o dia. Uma das moças, a mãe da menina resgatada
das ondas, na véspera, deixa a roda, se aproxima e o beija na face e sobre os lábios
e Ricardo conheceu então a fraternidade, soube-lhe o significado e o gosto.
Depois, correram todos para o mar e as crianças, tomando-o pela mão o
conduziram.
Tudo era mistério, sonho, fantasia. Sobre as águas serenas a manhã
desponta, enquanto moças e rapazes cortam as ondas mansas e as crianças
recolhem conchas azuis, vermelhas, brancas, cor-de-rosa. Alguns casais amam-se
na madrugada mas Ricardo não procura ver nem saber, estendido entre eles na
praia, em silêncio, cercado de conchas que as crianças lhe oferecem.
Depois, tomando das roupas velhas, desbotadas, rotas, poucas e
precárias, reunindo a meninada, nada lhe pediram e sim lhe deram alguma coisa
grande, antes desconhecida para ele, uma pureza nova, não aquela do seminário
dependente do medo e do castigo; agora o pecado já não existe. Nem o demónio,
nem a maldade, nem o desespero varridos da face da terra. Para sempre.
Da fímbria da praia, do começo do mar, gritam em despedida: paz e amor;
e vão-se embora. Paz e amor, irmão. Ricardo ficou parado, qui eto e redimido.
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