sexta-feira, junho 03, 2016

Tieta do Agreste
(Jorge Amado)





EPISÓDIO Nº 161























ONDE O AUTOR, UM SACRIPANTA, A PRETEXTO DE FORNECER DISPENSÁVEL INFORMAÇÃO, DEFENDE-SE DE SEVERAS CRÍTICAS




Não, não pensem que quero me meter na briga recém iniciada, quem sou eu? Já defendi a minha posição de completa neutralidade, narrador objectivo e frio, expondo factos concretos. Não venho tampouco comentar a visível mudança operada na maneira de ser do moço Ricardo. Apenas, mais uma vez constato a influência de uma perfumada e gostosa – como direi? –, de um perfumado e gostoso favo de mel, inebriante rosa negra. Transforma gelo em fogo, carneiro em leão, seminarista devoto em estudante subversivo e arruaceiro.

Outro dia, escandalizado, meu amigo e companheiro de lides literárias, Fúlvio D’Alembert (José Simplício da Silva, bancário, na mediocridade da vida civil e burguesa; se por acaso já forneci essa explicação, aqui a repito, antes de ser acusado de redundante do que de omisso), revelou-me que, em certos seminários, actualmente, os estudantes lêem e analisam Freud e Marx e não o fazem para negá-los, refutando-lhes as heréticas teorias, denunciando-os à polícia política à falta da Santa Inquisição; uma vale a outra.

Muito ao contrário, comentam-lhes os escritos entre elogios e aplausos. Não obstante a presença de Frei Timóteo no corpo docente, penso que os alunos do seminário de Aracajú não conheciam Marx e Freud nos idos de 1965 – data tão próxima, ainda ontem, parecendo contudo distante passado ante as transformações do mundo; ocorrem elas com tal rapidez que o tempo é jogado para trás, o presente se reduz a breve, fugaz instante.

O encontro com os hipies, as repetidas conversas com Frei Timóteo, uma e outra coisa concorreram para a inesperada evolução do jovem mas, em definitivo, o que o fez outro, virando-o pelo avesso, foi a olente rosa negra, o suculento favo de mel onde sequioso e faminto mergulhou e renasceu.

Emprego muito a propósito as imagens acima, rosa negra, favo de mel, metáforas destinadas a evitar palavras exactas e justas, seja por pernósticas, incompletas e feias as que não ofendem o pudor: vagina e vulva, por exemplo, terríveis palavrões; seja por criticáveis e condenadas as que exprimem com vigor, exactidão e poesia, a doçura, a graça, o calor, a eternidade, a perfeição: xoxota, xibiu , boceta. No texto anterior, ai de mim! – utilizadas e repetidas.

Meu confrade e crítico Fúlvio D’Alembert, a quem entrego as páginas escritas para correcção gramatical, conselhos estilísticos e acentos, recriminou-me asperamente pelo uso e abuso de tais termos, por colocá-los na própria escrita literária, enfeando a linguagem, emporcalhando a frase. Por que tanto repetir palavras obscenas, por que voltar seguidamente ao maldito tema em copiosas referências àquilo que ele trata pudicamente de aparelho genital da mulher?

Mas pergunto eu: como não falar de coisa tão importante na vida do homem? Por que lhe dar nomes ásperos e agressivos, poluindo-lhe a beleza e a graça? Por que lhe negar os doces apelidos nascidos da língua grata do povo?

Na mesa do bar, quando Aminthas, Fidélio, Seixas, o vate Barbozinha, o diligente Ascânio começam a discutir altas filosofias, a desovar altos conhecimentos em maratonas intelectuais, Osnar, chateado, a bocejar, protesta:

- Como vocês perdem tanto tempo discutindo essas besteiras, quando se pode falar de boceta, coisa adorável?

Osnar, afirma dona Carmosina, e nisso concordo com a sabichona, por vezes nos leva a alma.

Aproveito, aliás a referência à malta do bilhar para responder a outra restrição feita pelo caro e meticuloso Fúlvio D’Alembert à presente narrativa. Chama-me a atenção para o facto de não ter sido o leitor informado da profissão de três dos quatro compadres de contínua presença nas páginas deste melodramático folhetim.

De Osnar se sabe a condição invejável de cidadão apatacado, vivendo de rendas; e os demais? Falou-se da tendência a humorista de Aminthas, do fanatismo pelo som moderno e do parentesco com dona Carmosina, nada disso definindo profissão ou fonte de receita. 

Sobre Seixas, apenas referências às primas, um rol delas; de Fidélio nada se conta, fugidio indivíduo. Concordo com a crítica, confesso o erro, dou a mão à palmatória. Tem razão o amigo Fúlvio D’Alembert ao apontar-me a grave lacuna, a falta de informação assim importante, direi mesmo fundamental: o meio de vida de certos personagens.

A economia condiciona o mundo e dirige as acções humanas, ensina Marx aos seminaristas. Ou é o sexo, como aprendem em Freud? Confusão medonha. São os três, Aminthas, Seixas e Fidélio, funcionários públicos. O primeiro, federal, os outros dois, estaduais. A par da condição de servidores da Nação e do estado dos três rapazes, o leitor não mais os pensará desempregados, troca-pernas, boas vidas. Troca-pernas, boas-vidas, de acordo; desempregados, não.

Chego, por fim ao motivo único dessa minha intervenção. Desejo apenas informar os nomes dos cinco assinantes de A Tarde. São eles: Modesto Pires, o árabe Chalita, Edmundo Ribeiro, doutor Caio Vilasboas e seu Manuel Português. O sexto exemplar, como se sabe, vem, gratuito, para dona Carmosina, oferta da gerência.

Após a publicação da Carta ao Poeta De Matos Barbosa, a explosiva crónica de Giovanni Guimarães, o número de assinaturas passou de cinco a nove, dona Carmosina – ela sempre sai ganhando – embolsou polpuda comissão. Polpuda em termos de Agreste, naturalmente… Tudo no mundo é relativo, como diria Einstein, desconhecido dos seminaristas de Aracajú.

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