terça-feira, agosto 02, 2016

As vinhas no nosso Ribatejo.
Filhos das Extremas

















Numa vinha do Ribatejo, as crianças brincavam por entre o emaranhado das cepas ainda por podar e que por isso apresentavam aquele aspecto de desalinho e desmazelo a fazer lembrar os palcos das batalhas do antigamente uma vez acabada a luta e antes de retirados os corpos e os destroços que tinham algum valor.

A vindima também é uma espécie de luta perdida pelas cepas que pretendem esconder entre as parras o produto da sua criação, perante o exército de homens e mulheres, mais elas que eles, que as tomam de assalto, tesoura numa mão e balde na outra e que virando e revirando as vides vão cortando os cachos que as parras procuram esconder ciosamente.
Retirado o produto do saque a vinha fica uns meses ao abandono e para se retemperar e esquecer da afronta hiberna durante o Inverno que se aproxima e algumas vezes afunda as mágoas nas águas das cheias do rio Tejo, quando o este ainda tinha cheias.

Depois, a natureza benigna que não é de ressentimentos, faz chegar a Primavera com as papoilas, os mal-me-queres, as andorinhas e tudo acaba por esquecer entre os risos e as corridas das crianças enquanto os pais se afadigam de volta das cepas cortando e atando as vides junto aos “olhinhos” de onde hão-de brotar, lá para o fim do Verão, mais cachos com uvas resplandecendo de cor.
Mas até lá, entre outras coisas, há que combater o míldio e não há que se atrasar senão a praga avança irremediavelmente e o que haveria de ser para os homens irá para “os bichinhos”.

É a fase mais difícil quando, a partir do início da Primavera, a doença começa a atacar. O Manuel e a mulher assumem o papel de enfermeiros e todos os dias, bem cedo, lá os temos à cabeceira do doente, mirando e remirando as folhas à procura daqueles sinaizinhos brancos, indicadores da doença que depois passará também para os cachos porque a descoberta precoce desses sinais, como em todas as doenças, é decisiva para o êxito no combate à praga.

A mulher, especialmente vocacionada para as tarefas laboratoriais, prepara o remédio dissolvendo em água, no pequeno tanque que existe para esse efeito, a meio da propriedade, o produto que, de todos quantos existem, lhes parece ser o melhor para debelar a doença.

Depois, enche o depósito do pulverizador, ajuda a colocá-lo nas costas do marido e o Manuel lá vai, vinha fora, sem ter perdido o tino à última cepa que pulverizou quando todas parecem exactamente iguais e retoma a tarefa procurando atingir com os borrifos todas as folhas mesmo as menos acessíveis.

Atentemos nos seus movimentos, reparemos na sua expressão e veremos nele, não o trabalhador agrícola mas um especialista de saúde que põe em cada gesto a precisão de uma técnica não aprendida na escola, antes uma herança do seu pai e que ele executa com uma grande dose de amor.

Se não conseguirmos ver estas pequenas diferenças do gesto e da expressão nunca compreenderemos porque a ligação do homem à terra é tão diferente de todas as outras. Não é o Manuel que é dono daquela terra, é ela que é dona dele.

Mas não é fácil a vida destas famílias, as vinhas não têm dimensão suficiente para rentabilizar a compra de máquinas que tornariam os trabalhos mais rápidos e por conseguinte mais baratos, para além de que uma atitude muito individualista e desconfiada dos proprietários das terras, não permite trabalhá-las em conjunto fazendo grande o que é pequeno.

Por isso, é sem esperança que o Manuel olha para as extremas da sua vinha percebendo que enquanto elas se mantiverem onde estão a sua vida não passará da cepa torta.

Do preço do vinho também não há que esperar grande coisa. Se há anos de fartura, que até os há, logo o seu valor cai por aí abaixo de tal forma que nos anos de escassez se chega a ficar com mais dinheiro no fim da safra.

As grandes casas agrícolas, essas é que se safam, com tantos hectares de vinha podem ter tractores que lavram a terra e procedem à pulverização mecânica e nos anos de fartura armazenam o vinho em grades depósitos que vendem mais tarde quando o preço lhes convém.

O Manuel sabia que era assim mas nada podia fazer, os trabalhos da vinha sabia-os ele de olhos fechados, a sua infância, tal como a do seu filho agora, tinha-a passado entre as cepas daquela vinha, quem sabe mesmo senão teria sido concebido no meio delas. A vinha era a sua segunda casa, à sombra da oliveira ao pé do tanque onde se faz a calda para as “curas” tinha a mãe lhe dado de mamar e era lá, num berço improvisado, que ele dormira as suas primeiras sestas de criança.

Estava fora de causa vender ou arrendá-la. Que pensaria o pai lá no outro mundo, depois daquele esforço que fizera anos antes de morrer para “armar” a vinha, renová-la com castas novas, preencher as falhas das que entretanto tinham morrido e dar-lhe todo aquele aspecto de propriedade dos ricos só que em ponto pequenino já se vê e… o que pensaria ele próprio?

E o seu rapaz, como haveria de se governar só com aquela vinha que mal dava para ele e para a mulher? Lá teria que ir trabalhar para algum dos ricos da terra, que ele não tinha problemas com o trabalho, era sossegado, tinha boas mãos e sempre aprendera tudo com muita facilidade. Tomara o patrão que viesse a ficar com ele mas trabalhar na terra que é nossa é muito diferente, as cepas é como se fossem o prolongamento da família e elas também percebem isso e o rapaz já demonstrava o mesmo apego.

O Manuel nunca ouvira falar na escola na família dos Habsburgos da Casa Imperial da Áustria. O professor só lhe ensinara os Reis de Portugal e alguns, agora, ele já os esquecera mas houve tempo em que os soubera a todos com as dinastias a que pertenciam e tudo… mas dos Habsburgos, esses, nunca ouvira falar.

O mesmo já não diria dos “filhos das extremas” embora fosse um assunto mais ou menos tabu lá na aldeia, daqueles que eram falados em conversas surdas do…”cala-te boca”, e mais pelas mulheres do que os homens que fugiam desse tema mas não deixavam de pensar nele porque o assunto interessava a ambos por igual. No entanto, era mais conversa de travesseiro…que é também para isso que servem as mulheres.

A coisa era mais notada por altura das bodas, quando os pais dos noivos eram donos de vinhas que confrontavam as extremas umas com as outras e eram inevitáveis alguns sorrisos e aquelas frases perdidas…«lá vamos ter mais filhos das extremas».

Claro que havia uma intenção premeditada de aumentar o tamanho das propriedades pelo casamento dos filhos, mesmo quando tinham relações próximas de parentesco. Não quer dizer que os jovens não se gostassem, conheciam-se desde pequenos, brincaram em criança nas extremas das vinhas que eram dos pais, enquanto eles trabalhavam, mais tarde foram aos mesmos bailes e tudo sempre abençoado pela família.

Era tudo tão intrincado que era difícil dizer onde acabava a verdade e começava a má-língua. Eram zonas de fronteira tal como as extremas das vinhas. 

O que eles tinham era mais pudor que a família dos Habsburgos que nem sequer dava para disfarçar a intenção dos casamentos entre parentes chegados mas o povo, por ignorância, falava em maldição. 

Muitas pessoas da tão distinta família, ao longo de várias gerações, nasceram defeituosas com degenerescências faciais, o famoso queixo dos Habsburgos, como resultado de uma desordem genética pelo acumular de casamentos consanguíneos, dos quais, o mais célebre, terá sido Carlos II de Espanha que morreu cedo e estéril pondo ali termo à dinastia à qual se seguiu a dos Bourbons.

 Contudo, com esta astuta política de casamentos, concebida por Maximiliano, pouparam-se muitas guerras, muitas vidas e muito sofrimento que de outra forma seriam inevitáveis para manter e aumentar o poder desta família na Europa que, veja-se, começa quando o Rei Rodolfo de Roma conquistou a Áustria em 1273 e só terminou em 1918 com a 1ª G.G. mundial.
Pelo meio governaram a Europa como Imperadores, Reis, Duques e Arquiduques de vários países, inclusive de Portugal, no tempo da denominação Filipina, mesmo defeituosos, melancólicos e meio loucos pela doença de que padeciam.

Mas, destas coisas, o Manuel e a mulher não sabiam nada e nesse dia à noite, deitados na cama, ele cansado de um dia inteiro com o pulverizador às costas puxando para cima e para baixo o manípulo, nem sei quantas milhares de vezes, e ela derreada dos braços de mexer a calda e carregar os pulverizadores, começaram a falar do filho:

- Oh homem, já reparaste que o nosso rapaz parece agradado da filha dos nossos vizinhos, aqueles que  têm a vinha pegada com a nossa, com a extrema também a acabar na vala grande onde está a figueira que dá os figos pingo de mel?

- Então, e oh mulher, eu não sei onde fica a figueira e onde acaba a vinha do vizinho? -  Mas a rapariga ainda é nossa sobrinha…

- Oh!, é prima dele em 2º grau, já se viram coisas bem piores e a vinha... olha que ainda é um bom bocado maior que a nossa, não estará tão bem tratada, é verdade, mas isso é porque o Hermenegildo não chega aos teus calcanhares e depois, também com aquela doença que ele tem já não vai longe…

-E a rapariga, gostará dele?

- Ora, vê-se mesmo que és homem, nunca reparas em nada, deixa isso por minha conta e dorme que amanhã é outro dia de canseira…


… Algures, na década de sessenta, no seio de uma família na freguesia e coração do Ribatejo deste Portugal pequenino, que nunca conheceu a política casamenteira concebida pelo rei Maximiliano da Casa Imperial da Áustria.

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