sexta-feira, março 11, 2016

Astério era feliz em Agreste....
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)


EPISÓDIO Nº 99

















Bastavam-lhe Agreste, a vida pacata da cidade, os prazeres, mínimos, a boa companhia, não queria mais. São Paulo? Emprego em escritório, bom ordenado, horário rígido? Quarto em casa da cunhada? Deus o livre e guarde.

Noite de discussão áspera e desagradável, Elisa perdera a cabeça e o acusara de indiferente e molengas, de egoísta, a pensar unicamente nos próprios interesses, sem ligar aos dela. 

Para ele, um pamonha, o marasmo de Agreste podia ser o ideal de vida, mas ela, moça e viçosa, tinha ambições maiores: a cidade grande, plena de possibilidades, vida digna de viver-se. 

Onde, aliás, Astério se quisesse poderia progredir, tornar-se alguém, ganhar dinheiro, afirmar-se. Mas ele não a compreendia, não fazia caso dela, tratando-a como se ela fosse um pedaço de pau, um animal sem serventia, um trapo.


Segurando a barriga para conter as dores, Astério fugiu para a sala. Elisa terminou vindo buscá-lo, ao ouvir os gemidos pungentes. Encontrou-o esvaído, pálido, cor de cera, numa daquelas violentas crises de estômago. Dera-lhe remédio, pedira desculpa pelas más palavras da exaltação passou às lágrimas.

Não recuara, no entanto de usar de todos os recursos junto da irmã para que ela os levasse a viver em São Paulo. Verde a boca de fel, ele nada respondera mas entre os engulhos decidira tomar medidas urgentes para impedir a concretização do projecto, sem que Elisa viesse a saber e a responsabilizá-lo pelo fracasso dos monstruosos planos. Enquanto ouve doutor Franklin, medita e resolve.

Discreta, junto a uma estante onde se acumulam papéis, encontra-se a formosa Leonora Cantarelli, enteada da promitente compradora.

Um sorriso suave no rosto delicado, talvez, entre todos os presentes, seja ela quem mais deseja possuir casa em Agreste, mesmo modesta, em rua sem calçamento, mas com um pequeno jardim plantado de cravinas e resedás, um coqueiro carregado no quintal, varanda onde estender a rede no calor da tarde.

 Ninho para ela e seu marido, marido com ou sem papel passado, não impunha exigências desde que fosse Ascânio Trindade. Mãezinha prometera se ocupar do caso dar jeito em sua vida, Madame Antonieta não é mulher de falar em vão. Leonora sente-se confortada, espera; escuta a leitura com paciência, virtude aprendida em duro aprendizado.

Do outro lado da barricada, ouvindo a interminável lengalenga da escritura, dona Zulmira, velhíssima, ar de ave de rapina, óculos fora de moda escanchados no nariz adunco, o terço emrolado no punho magérrimo, no pescoço um medalhão com o retrato do finado marido quando jovem e noivo.

Sorri contente, a casa convertida em dinheiro, servirá à salvação da sua alma e à glória da Senhora de Sant’Ana, não irá parar às mãos excomungadas de João Felício, amaldiçoado sobrinho.

O coisa ruim não poderá fazer com suas últimas vontades o que estavam fazendo com o testamento de seu Lito os maus parentes, discutindo-lhe a validade na justiça, tentando roubar a Santa Madre Igreja.

Acolitando-a padre Mariano: o dinheiro resultante da venda da casa destina-se a missas no altar-mor da Matriz diante da imagem da padroeira e em benefício da alma da doadora, mas somente após a sua morte. Antes depositado em mãos de Modesto Pires, renderá juros mensais que ajudarão às despesas de dona Zulmira, servirão para médico e remédios, conforme consta de documento anexo à escritura que o doutor Franklin está terminando de ler.

Emboscado no passeio em frente, o sobrinho João Felício espia. Pequeno comerciante de secos e molhados, o rosto semelhante ao da tia, nariz curvo, queixo duro, gavião pronto a atacar a presa. A presa acaba de lhe escapar, levada céu afora pela Santa, ídolo e superstição dos católicos romanos. 

Na casa confortável que esperara ocupar em breve – a Velha não pode durar muito – com a mulher e o filho pequeno, irá viver Zé Esteves, com a presunção, a arrogância e a mulher, pobre infeliz.

Também de quem a culpa se ele, João Felício, se casara contra a vontade da tia com moça protestante, filha do pastor da Igreja Batista de Esplanada?

Católica à maneira antiga, desconhecendo as teses ecuménicas, para dona Zulmira, protestante é sinónimo de herético, inimigo, raça perdida e condenada, com pés de bode. 

Os crentes são filhos do demónio aos quais os bons católicos devem negar pão e água, já que, infelizmente, se acabou a Santa Inquisição.

Terminada a leitura, doutor Franklin convida as partes interessadas, para o acto de assinatura. Como testemunhas, apõem suas firmas Astério e o Padre e depois apertam-se as mãos, em mútua felicitação.

Dos fundos bolsos da saia negra de gorgorão de seda, Perpétua, depositará provisória, saca rolos e rolos de dinheiro, entregando-os ao doutor Franklin, todos os olhos acompanhando a operação. O tabelião conta nota por nota, antes de passá-las para a mão de dona Zulmira.

Sorridente, Tieta remói uma apreensão: terreno e casa, comprados e pagos, escriturados em nome de Antonieta Esteves Cantarelli, pertencem sem sombra de dúvida a Antonieta Esteves, simplesmente?

O advogado consultado em São Paulo, antes da viagem, garantira que sim, desde que existissem testemunhas de compra e pagamento, tratando-se, então de simples engano de nome, facilmente corrigível. Quem o dissera não fora um corrigível qualquer, de porta de xadrez, e sim o Procurador-Geral do Estado, freguês constante do Refúgio, consultor jurídico de Madame Antoinette.


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