segunda-feira, junho 06, 2016

Tieta do Agreste
(Jorge Amado)



EPISÓDIO Nº 163























Não encontrando Tieta, a ingrata não o informara da ida para Mangue Seco, declarou para Leonora dois dos cinco poemas redentores: os outros três, ele os considerava impublicáveis em jornais ou revistas, impróprios para recitativo, defesos a ouvidos inocentes.

Para Tieta, viúva, íntima e velha amiga, musa permanente, se animaria a dizê-los. Para Leonora, não, pois retomando o estro de Gregório de Matos Barbosa, baixou o pau com vontade, em linguagem vigorosa e áspera, nos criminosos directores da Brastânio. Em certos versos, como negros e brutos diamantes, cintilam palavrões – a imagem é do próprio Barbozinha.

A chegada de Peto, com ruidoso entusiasmo de pescador bem sucedido, apressou a partida do bardo para a agência dos Correios onde ia postar os poemas e longa carta para Giovanni Guimarães. Antes, porém, declamaria poemas e carta para a amiga Carmosina. Essa, se bem donzela, pode ouvir qualquer barbaridade, não se escandaliza.

Lá se foram, primeiro o poeta, cachimbo apagado, passo lento, ardente coração; depois o garoto, sem vergonha e afectuoso, no espanto da primeira adolescência. Leonora contempla as gravuras, cabras e baleias, pedras e montes, a moça com um bastão e um estranho sol azul a nascer sobre as águas ribeirinhas, extravagância ou insolência do artista.

Não a surpreendeu, porém, aquele sol azul, era-lhe familiar. Desde o desembarque em Agreste, Leonora se sentia cercada por uma atmosfera diáfana, em tons celestes, um mundo mágico, irreal, onde não cabe a maldade; nem a maldade nem a desgraça. Os lábios murmuram as duas estrofes do repudiado poema de Barbozinha, aquelas onde o vate se referiu a Ascânio Trindade, capitão da aurora.

Encurralado capitão, há dois dias e duas noites sem repouso, a face intranquila, os olhos injectados, as marcas da insónia. Na primeira noite, quase mudo. Andando com Leonora em torno da praça, tomara da mão da moça e a prendera entre as suas, em busca de apoio e segurança.

A crónica no jornal deixara-o doente. Pouco a pouco, talvez porque ela não houvesse feito comentário nem perguntas, ele falou do problema. O destampatório de Giovanni Guimarães deve possuir alguma base concreta – disse – uma parcela de verdade mas ele Ascânio, sem querer adiantar qualquer afirmação, tem quase a certeza de haver imenso exagero na exaltada diatribe do jornalista, resultante, quem sabe, de obscuras razões.

Alguma poluição há de decorrer da indústria de titânio, todas as fábricas poluem, umas mais, outras menos. Não acredita, porém, naquela apavorante história de perigo mortal para a flora e a fauna, para o rio e mar. De qualquer maneira, antes de tomar posição, devem esperar que a denúncia do jornalista se confirme ou se reduza, colocada nos devidos termos pelos especialistas competentes. Leonora suspendeu-lhe a mão e a beijou: Ascânio tem razão, é preciso esperar, talvez tudo isso não passe de tempestade em copo de água.

Na noite seguinte, a da véspera, fora ainda mais difícil. Habitualmente, Ascânio arranja no decorrer do dia pelo menos dois ou três motivos para aparecer em casa de Perpétua, pedindo licença para entrar por um momento ou chamando Leonora à janela, ela dentro da sala, ele no passeio; um dedo de prosa, um sorriso, um beijo. Naquele dia, porém, não aparecera. Leonora tivera notícias, por dona Carmosina, da violenta discussão travada pela manhã na Agência dos Correios. Depois o Comandante passou com dona Laura para buscar Mãezinha e Ricardo mas não fez referência ao incidente. De Ascânio, nem sinal.

Após o jantar, na hora sagrada, ele chegou sério e triste. Leonora esperava-o na porta, Ascânio não quis entrar nem mesmo para dizer boa noite a Perpétua. Atravessaram para o jardim da praça onde moças e rapazes namoram, circulando aos pares. Houve um tempo de silêncio, pesado, depois ele perguntou:

- Já soube?

- Da discussão? Já.

- Horrível. Perdi a cabeça, destratei o Comandante, uma pessoa muito mais velha do que eu, um homem de respeito. Mas ele me acusou de desonesto.

- O Comandante? Pensei que tivesse sido Carmosina.

– Ela só me xingou, no ardor da discussão, não tem importância. Mas o Comandante falou que eu menti, que estando a par dos planos da fábrica, nada disse, enganei meio mundo. Para ele, eu me revelei indigno da confiança depositada em mim. Não sei se isso é verdade, mas o resto é: menti, escondi o que sabia, procurei tapear os outros. Mas eu juro que só fiz isso para o bem de Agreste. O doutor Mirko, você sabe quem é, me pediu segredo pois nada estava ainda decidido e se a coisa viesse a público podia botar tudo a perder. Para mim o interesse por Agreste passa por cima do que quer que seja.

Como o fizera na véspera, Leonora levou a mão de Ascânio aos lábios e a beijou. O rapaz sorriu, um sorriso tão triste que ela pode medir quanto ele estava magoado e temeroso. Então, ali mesmo em plena praça, sob uma árvore, sem se preocupar com a presença de casais de namorados, ela se deteve e, tomando-lhe o rosto, o beijou na boca. Para que ele e todos a soubessem solidária incondicional.

Na rede, admirando as gravuras, as altivas cabras, as pacíficas baleias, o grande sol azul, sonho e realidade, Leonora conta os minutos. Pela manhã, Ascânio mandara Leôncio com um recado: tem pela frente um dia muito ocupado com os problemas do calçamento da rua da entrada da cidade – Leonora se encontra a par do complô festivo, da projectada homenagem à Joana D’Arc do Sertão – mas se conseguir tempo passará a vê-la, a qualquer hora. Nos lábios de Leonora esvoaçam os versos de Barbozinha sobre o capitão da aurora.

Badala o sino da Matriz anunciando cinco horas da tarde. O capitão da aurora está cercado de ameaças e perigos. Apenas ele ou ele e ela, o idílio de Ascânio e Leonora, o sol azul de Agreste?

Onde a altivez, o entusiasmo, a certeza de triunfo do Capitão Ascânio Trindade a comandar o progresso, derrubando os muros do atraso, acendendo esperanças no burgo morto e no peito de Leonora? Murcho, inquieto, triste, quase derrotado. Vencido ou vitorioso, pouco importa, meu amor.

Ei-lo que irrompe porta adentro, sem sequer pedir licença, de novo altivo, entusiasta, triunfante, nas mãos um maço de jornais, a notícia do asfalto próximo no Caminho da Lama e a placa com o nome da rua dona Antonieta Esteves Cantarelli (cidadã benemérita).

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