O mistério da fé
- Anatomia de um crente
Este mail foi-me inspirado, mais uma vez, pelo programa dos “Prós e Contras” em que o tema, por que respeita a convicções religiosas numa sociedade de forte tradição e influência da Igreja Católica como a nossa, corre sempre o risco de excitar a sensibilidade de pessoas de maior fervor religioso para quem estes assuntos são dogma, não se discutem. Felizmente as coisas, nesse aspecto, evoluíram muito, o diálogo está aberto e já é possível abordar este tema sem crispação de maior e, acima de tudo, com respeito pelas posições e formas de sentir de cada um, como foi possível verificar pela conversa travada por José Barata Moura, assumidamente ateu, o Bispo D. José Policarpo e ainda Maria José Nogueira Pinto e António Pinto Leite ambos profundamente católicos.
Claro que se percebeu a utilização de uma linguagem com “pinças” por parte de Barata Moura, quando tentava responder às questões que Maria José N. Pinto, desejosa de “brilhar” perante o seu Bispo, não resistiu à tentação de lançar perguntas de cariz desafiador, para não dizer provocador, que nada tinham de original e das quais não me parece, pela qualidade da resposta do interlocutor, que se tivesse saído lá muito bem, tendo mesmo suscitado a intervenção de D. José para um diálogo que a Dr.ª Fátima considerou de histórico, talvez porque ele aconteceu no seu programa…por mim, considerei-o demasiado erudito e por isso um pouco fora do entendimento da maioria das pessoas que o ouviram. Não tenho dúvidas que se ele tivesse tido lugar fora das câmaras da TV, sem tantos milhares de pessoas a assistir, a clareza teria, provavelmente, sido maior.
Deixa-me então tentar dizer as cosias de uma forma simples por quem não é filósofo, catedrático ou bispo e falemos do que, neste assunto, constitui o cerne da questão porque, tudo o resto, decorre daí: O Mistério da Fé. E é mistério por três razões, a primeira das quais, é a fé em si mesma, a crença, o acreditar numa entidade suprema, todo-poderosa, que não é deste mundo mas que está na sua origem e estará no seu fim e, portanto, de carácter divino, senhor dos destinos de tudo quanto existe… a segunda razão para que a fé seja um mistério reside no facto de que só podemos chegar a ela por uma via meramente espiritual que não tem a ver com nenhum tipo de raciocínio, conhecimento ou pensamento ou seja, em matéria de fé, ou se tem ou não se tem.
Finalmente, constitui ainda mistério porque eu não sei, nem ninguém sabe, porque razão a Dr.ª Maria José Nogueira Pinto é portadora dessa fé e o Doutor Barata Moura, eu e tantos outros não somos, quando eu, e falo por mim, nasci no seio de uma família católica, fui educado de acordo com os preceitos da religião católica, frequentei, enquanto rapazinho, o tão badalado colégio de jesuítas de S. João de Brito onde tomei a 1ª Comunhão, fui Crismado pelo Sr. Arcebispo de Metilene, fiz retiros, peregrinações à Cova da Iria, rezava o terço diariamente, confessava e comungava e, no entanto, não me fiz crente…
Ao contrário da Dr.ª Maria José Nogueira Pinto que se sente a si própria, na qualidade de crente, como filha de Deus, eu sinto-me apenas como um herdeiro de um macaco que teve muita sorte em conseguir sobreviver num meio tão hostil face a tão poucos recursos de que dispunha mas que conseguiu evoluir através do desenvolvimento do seu cérebro que progressivamente lhe permitiu raciocínios cada vez mais elaborados até constituírem pequenos patrimónios de conhecimentos que foram passando de geração para geração, como um conto em que cada um lhe acrescenta um ponto e de tantos pontos que lhe foram acrescentados chegámos ao que somos hoje.
Por outro lado, a Dr.ª Maria José Nogueira Pinto que em vida partilha dois mundos, um em que vive, outro em que acredita, tem, quando morrer, o segundo à sua espera e se nele for aceite será, para ela, a eternidade. Pobre de mim e de todos os não crentes para quem só nos espera uma cova funda com laje ou sem laje a cobri-la.
Mas a Dr.ª Maria José está preocupada com a sociedade dos não crentes, diz que nós somos infelizes, tristes, que vivemos sem esperança e não disse mas pode ter pensado que pessoas assim, para alem de não possuírem nenhuma motivação para serem boas podem, até, facilmente, tornarem-se perigosas.
Em resumo, o que a D.ª Maria José deixou perpassar no seu fervor religioso é que existem na sociedade dois tipos de pessoas, as crentes: boas, alegres, felizes, caridosas, radiantes de esperança, ricas na fé e no amor a Deus e as não crentes: tristes, infelizes, sem esperança nem motivos para a ter e até eventualmente perigosos, no seu todo, quem sabe, uma ameaça para o mundo.
Não sei o que o Dr. Barata Moura teve vontade de lhe dizer e não disse mas eu dir-lhe-ia o seguinte:
-Não foi minha opção ser não crente, não tomei nenhuma decisão nesse sentido mas não sou capaz de amar Deus que não conheço nem entendo e, muito menos, acima de todas as coisas, como me ensinavam no Colégio mas sou capaz de amar, com toda a naturalidade, qualquer semelhante meu, seja ele quem for, venha de onde vier e que traga um sorriso nos lábios e uma mão estendida, mesmo que não perceba patavina do que ele diz.
- Olho à minha volta a natureza, especialmente aquela que conheci na terra onde julgo que nasceu, em África, e sinto por essa paisagem um respeito e uma tão grande admiração que, se fosse o seu Deus, ordenaria que ninguém lhe tocasse: nos seus povos, nos seus animais, nas suas árvores.
- E assim me basto no que me respeita a sentimentos e se não sou feliz é apenas porque os “objectos” do meu amor: o meu semelhante e a natureza não são bem tratados.
- Quanto ao resto… sou eu, os meus amigos, os meus familiares e as minhas recordações…não terei conseguido encontrar Deus mas se foi ele que fez isto tudo, tiro-lhe o chapéu: magnífico na beleza e na complexidade e se morresse amanhã, sem esperança de encontrar outro mundo, dir-lhe-ia que a vida, e não importa se foi boa ou má, foi uma oportunidade maravilhosa e quanto ao outro mundo, sinceramente, bastou-me este…
- Amén...
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