terça-feira, janeiro 10, 2006

O Sr. Emílio...

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Se há personagens que se cruzam na nossa vida e que pela sua originalidade nunca as esquecemos, o Sr. Emílio foi, para mim, uma delas. Era uma figura típica de um velho suíço nascido ainda bem dentro do século XIX, pois quando o conheci tinha 19 anos e ele teria ultrapassado já os 80 com a sua farta e impecável cabeleira branca a coroar uma cabeça grande de larga testa.
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Como hóspede, partilhava comigo e com um colega meu, um dos quartos de uma casa no Príncipe Real que duas senhoras, viúvas, mãe e filha, alugavam para poderem sobreviver quando o Estado social não constituía preocupação para o governo de Salazar e as pessoas na velhice e na doença ou se amparavam na família ou socorriam-se da assistência das Misericórdias.

Era uma figura que não conseguia passar despercebida na nossa pacata cidade de Lisboa, dos primeiros anos da década de sessenta, porque ao contrário dos lisboetas dessa época, tristonhos e sisudos, ele era um homem comunicativo, invariavelmente bem disposto e que entendia que a convivência com os outros não podia ser apenas simples figura de retórica e por isso cumprimentava toda a gente que na rua, com regularidade, se cruzava com ele desde o polícia de giro, o guarda-nocturno e o guarda-freio do elevador da Glória apenas para citar os que são identificáveis.

A sua comunicabilidade era um convite para os miúdos lá da rua se meterem com ele. Um dia, pelo Carnaval, surpreenderam-no com aquela conhecida partida da carteira deixada no chão, mas à qual está preso um fio de nylon quase invisível e que o Sr. Emílio teria apanhado se os rapazes não tivessem rapidamente puxado o fio.

Apanhado no logro o Sr. Emílio riu tanto que mais parecia ter sido ele o autor da partida.

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O seu dia a dia processava-se com a pontualidade dos relógios suíços. Trabalhava na Baixa e quando, na rádio, às 13 horas, Os Parodiantes de Lisboa, começavam o seu programa com a música do genérico, invariavelmente, o Sr. Emílio metia a chave à porta e acto contínuo brindava-os, alto e bom som, com o seu arrevesado “Boa Tarrde”.

Nunca casou mas tinha dois amores na vida: a ópera e os americanos.

Não perdia nenhum espectáculo de ópera daqueles que por vezes eram dados no Coliseu mesmo quando o lugar era lá para cima, no chamado “galinheiro” mas ele só tinha olhos e ouvidos para a música e o lugar seria o que mais próximo estaria da sua bolsa.

O meu colega, uma vez, enquanto almoçávamos, referiu-se de forma crítica aos americanos e por uma única vez vi os olhos do Sr. Emílio ganharem um brilho especial, o seu largo rosto ruborizar-se e com todo o ardor da sua argumentação sair em defesa da sua “dama”.

Ele era um dos muitos europeus que tinha vivido e sentido as humilhações do regime nazi e não podia esquecer o papel libertador do exército dos E.U.A. e do sacrifício das vidas de tantos americanos que saíram das suas casas, do seu país, atravessaram o oceano para ajudarem a devolverem-lhe a dignidade de ser um europeu livre e isto, o Sr. Emílio, não podia esquecer, a sua gratidão seria eterna e ai de quem lhe dissesse mal dos americanos.
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O Sr. Emílio era um poliglota, a sua vida já longa tinha sido repartida pelo Cantão alemão da sua Suiça natal para onde, todos os anos, se deslocava em férias matar saudades da terra e encontrar-se com os seus irmãos dos quais ele era o mais novo. Mas o resto da sua vida tinha sido repartida pela Itália, França, Espanha e finalmente Portugal e embora nunca se referisse ao seu passado como se de um tabu se tratasse, o que todos nós respeitávamos nunca lhe fazendo perguntas, presumo que ele sempre perseguiu a tranquilidade que veio finalmente encontrar na paz bolorenta do regime do Salazar.

Apaixonado pelas línguas que tinha sido obrigado a aprender ao longo das suas deambulações pela Europa, ajudado pelo seu bom ouvido musical, o Sr. Emílio adorava as frases idiomáticas, quando as palavras diziam uma coisa e todas juntas, de seguida, diziam algo que não tinha nada a ver com o significado de cada uma delas. Expressões como: “fazer tijolo” ou”ter bicho de carpinteiro” faziam as delícias do Sr. Emílio que se divertia com elas até às sonoras gargalhadas.

Realmente, a parte cómica de uma língua é quando o povo cria uma espécie de segunda língua como se de uma pura brincadeira se tratasse para chatear quem a queira aprender, uma espécie de código reservado apenas aos nacionais dessa língua e muitas vezes desse lugar.

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Mas a língua portuguesa reservava ainda para o Sr. Emílio uma outra curiosidade constituída por uma palavra tão simples como “isso” que num determinado contexto e conforme a entoação remetia para situações e significados próprios de uma história detectivesca mas quem a vai contar é o Sr. Emílio:
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-O pai de uma filha casadoira mas com idade já a passar dos limites do casamento recebe em sua casa mais um namorado e candidato à mão da rapariga. Esperançado que daquela vez é que seria, o preocupado pai criava todas as condições para que o namoro decorresse sem nenhuns entraves arranjando afazeres de última hora para os deixar sozinhos fazendo as delícias do rapaz que não esperaria tantas facilidades.

Dali até à boda foi um passo e porque se tratava de gente pouco endinheirada a noite de núpcias foi em casa dos pais da noiva. A meio da noite, o jovem marido desiludido com a situação que tinha encontrado, levantou-se e percorrendo o corredor da casa de cá para lá e de lá para cá ia dizendo em voz alta: por isso, por isso, por isso! e passado mais um bocado repetia: por isso, por isso, por isso!

O sogro, que no seu quarto acordou com aquele coro de lamentações levantou-se e disse ao genro:

-Por isso, por isso, por isso, quais por isso nem meios por isso, quando me casei não encontrei isso e nem por isso me pus com isso!

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E é ao som das gargalhadas com que o Sr. Emílio rematava esta história que termino este texto que naturalmente lhe dedico.

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