terça-feira, agosto 08, 2006

RECORDAÇÕES DE UMA GUERRA




Tinha 23 anos quando embarquei no Uíge para Angola para onde Salazar, numa das suas raras aparições televisivas, tinha mandado os portugueses rapidamente e em força.

Estávamos em finais de 1962 e o país ainda estava chocado com as notícias e as imagens, a maior parte delas escamoteadas aos olhares do grande público pela sua violência e brutalidade, do massacre ocorrido em 15 de Março de 1961, no norte de Angola, em que centenas de pessoas tinham sido retalhadas à catanada por membros da UPA, Movimento de Independência liderado por Holden Roberto.

Agora, com 81 anos, o senhor tem intenções de publicar as suas Memórias onde, certamente, o referido massacre irá ser objecto de uma muito cuidada narração por quem espera ser elevado à categoria de reserva moral do Partido da FNLA.

Fechados no “casulo” em que o regime tinha transformado o país os portugueses não compreenderam o porquê daqueles actos hediondos sobre pessoas pacíficas, homens, mulheres e crianças, negros e brancos, que viviam aparentemente em perfeita harmonia uns com os outros.

Guardo ainda na memória as imagens dessas fotografias que de forma confidencial me foram mostradas enquanto soldado-cadete do Curso de Oficiais Milicianos e, portanto, na qualidade de futuro combatente cujo espírito guerreiro tinha que ser estimulado pelo despoletar do ódio contra os autores de tão horríveis atrocidades.

Não tinha parentes, amigos ou conhecidos no norte de Angola mas em 1960, numa viagem de fim de Curso, visitei aqueles locais, fui recebido por aquelas pessoas, confraternizei com elas e ouvi mais um dos inflamados discursos, patrióticos e nacionalistas, do Prof. José Hermano Saraiva que na qualidade de Responsável do nosso Grupo, não perdia oportunidade de impressionar com as suas qualidades oratórias.

Infelizmente, muitas dessas pessoas, iriam sobreviver apenas mais alguns meses até caírem vítimas do ódio e das políticas que geram os ódios.

A motivação para a guerra era tanto mais importante quanto é certo que os milicianos não tinham, ou não se esperava que tivessem, a vocação belicista característica dos Oficiais do Quadro Permanente que escolhiam a carreira militar como uma opção de vida.

Mas o país não tinha alternativa, os oficiais do Quadro eram poucos e reservavam-se para os lugares de Comando, alguns deles no conforto do ar condicionado de Luanda, e por isso um simples Alferes Miliciano poderia bem ser o “senhor de uma guerra” num território com a dimensão de uma província de Portugal.

E sem querer por em causa as Cadeias do Comando era impossível evitar que cada um de nós, Alferes Miliciano, “promovido” a “senhor de uma guerra” não desse “à sua guerra” um cunho pessoal… a sua assinatura ou mesmo uma simples rubrica.

Veio-me à memória um caso exemplificativo das cambiantes dessa guerra que variava de alferes para alferes em função das características de cada um, sendo certo, que naquele cenário, o mais provável é que cada um se aproximasse mais de si próprio do que em qualquer outro e quase tudo tinha a ver com a atitude perante a morte que neste caso, o mesmo é dizer, perante a vida.

Naquilo a que se poderia chamar de “encontro imediato de 3º grau” o nosso alferes deu de caras, por entre o capim com mais de 2 metros de altura, com um grupo de “terroristas” que não passavam de pessoas que foram obrigadas a abandonarem as aldeias em que viviam para se refugiarem no mato onde, por sua vez, com vontade ou sem ela, eram obrigadas a darem apoio logístico aos guerrilheiros sendo, por isso, consideradas de inimigo e como tal entravam nas estatísticas da guerra.

A surpresa e o medo impediram que fugissem o que também não era fácil naquele emaranhado de vegetação e o nosso alferes decidiu “meter conversa” tirando partido do à vontade e das qualidades didácticas que a sua profissão de professor lhe emprestavam.

Disse ele:

- “ A vossa situação não é fácil (hoje em dia seria apenas complicada) porque se vierem comigo sujeitam-se às represálias dos militares portugueses que vão procurar obter informações sobre os “terroristas” quer as vocês as tenham ou não para lhas dar ou simplesmente não queiram, direito esse que não vos assiste;

-“ Se ficarem, correm o risco de desagradarem aos guerrilheiros que têm as armas e teoricamente a obrigação de vos defender do exército colonialista ou, mais cedo ou mais tarde, serem apanhados numa emboscada ou por alguma bomba das que os aviões largam;

- “Em qualquer dos casos a vossa situação não é boa e eu, que ando aqui disfarçado de militar mas que, na verdade, o que sou é professor não quero assumir responsabilidades relativamente ao vosso futuro e, sendo assim, se quiserdes vinde comigo, caso contrário sigam o vosso caminho”.

Algures, no norte de Angola, nos tempos idos de 1963.

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