domingo, junho 17, 2007

A cidade de Epheso




A CIDADE DE EPHESO

Será que o nosso cérebro consegue guardar experiências vividas pelos nossos antepassados mesmo de tempos remotos?

Haverá algum recanto no cérebro, que se revela como a mais intrincada, complexa e misteriosa máquina da natureza, que funcione como uma espécie de arquivo morto de sensações e experiências que marcaram as vidas de muitas gerações que nos antecederam e que por isso deixaram marcas que não desapareceram completamente?

É sabido já que através da comparação dos registos do ADN se pode saber hoje que duas pessoas de raças diferentes tiveram um progenitor comum muitos milhares de anos atrás o que significa que, em termos biológicos, o passado mais remoto se liga ao presente através de um fio condutor inserido no ADN das pessoas.

E a pergunta que faço é se comportamentos de vida, importantes em termos de sobrevivência, repetidos durante muitas e muitas gerações que nos precederam não poderão ter deixado alguma marca num local recôndito do nosso cérebro.

Tive uma experiência interessante há muitos anos atrás quando, em silêncio, de pé, sobre o capôt de um jeep, olhava à minha volta, a perder de vista, a savana africana…apenas capim, árvores esparsas e uma ligeira brisa que perpassava por entre elas.

De repente, apoderou-se de mim uma sensação de pânico, mais que simples medo: estava só, perdido dos meus companheiros de percurso, indefeso, à mercê das feras.

Não sei quantos segundos terá durado aquela estranha sensação, apenas um lapso de tempo, por certo, mas com um forte impacto que me levou rapidamente a saltar para o chão e a reconfortar-me com o som delicioso do motor do jeep que rapidamente pus a trabalhar e me reconduziu ao presente numa autêntica fuga àquele passado longínquo.

Quantos antepassados meus, naquele cenário onde tudo começou para a humanidade e onde pouco ou nada deverá ter mudado até àquele momento, não teriam vivido o drama de uma morte violenta nas garras e dentes de uma fera que bem poderia ser o tigre dentes de sabre, nosso habitual carrasco, especialmente quando nos apanhava afastados do grupo a que pertencíamos por laços de parentesco?

E por que não, momentos terríveis de pânico, infelizmente vulgares para eles, vividos ao longo de tantas gerações por tantos antepassados nossos poderem ser recordados por um seu descendente numa situação de especial e rara inspiração?

Lembrei-me, novamente, desta minha estranha experiência com mais de 40 anos quando, há dias, tive oportunidade de visitar no sul da Turquia as ruínas da cidade de Epheso.

Epheso foi a primeira cidade da Ásia Menor nos tempos antigos, ainda anteriores a Cristo e a 4ª do Império Romano em dimensão e importância, meio milhão de habitantes e pode ser considerada o berço da nossa “nacionalidade” talvez mais que qualquer outro local.

Ocupada pelos Gregos desde 1200 AC até 1923, dali irradiou a religião de Cristo e o pensamento científico, ali viveram as primeiras comunidades secretas de cristãos e em 400 DC teve lugar o 3º Concílio ecuménico.

Dispunha, ao tempo, da 3ª maior biblioteca do mundo com 12000 livros, depois da de Alexandria e Pérgamo, e a fachada principal de dois andares e 16 colunas repartidas pelo piso térreo e 1º andar ainda lá estão para as podermos admirar.

O seu teatro para 25000 pessoas permanece e é utilizado para espectáculos musicais e juntamente com o de Epidauros, na Grécia, é dos mais bem conservados.

S. João viveu, morreu e escreveu aqui o seu Evangelho, S. Paulo visitou a cidade 3 vezes e esteve aqui preso e o grande filósofo Heraclito, que pertencia a uma das famílias mais importantes da cidade, foi o autor da célebre frase de que “ não se entra duas vezes no mesmo rio porque tudo se move excepto o próprio movimento e numa segunda vez as águas do rio já não são as mesmas e nós próprios também não”, como hoje sabemos pela constante renovação das células do corpo humano.

Acerca dele, conta Diógenes, que retirado do templo de Artémia divertia-se a jogar com as crianças quando, chamado à atenção pelos efésios lhes perguntou:

-“ De que vos admirais, perversos? Que é melhor: fazer isto ou administrar a República convosco?”

Tales, um dos sete sábios da Grécia Antiga, era de Mileto, cidade próxima de Epheso, a sul e com ela constituíram dois berços do pensamento filosófico.

Tales era, igualmente, para alem de filósofo, o primeiro que se conhece no Ocidente, fundador da Escola Jónica, matemático e astrónomo tendo sido a primeira pessoa que mediu o tempo com precisão utilizando um relógio solar denominado “gnômon”e previu, também pela primeira vez, um eclipse solar no ano de 585 AC e que ocorreu, na realidade, em 28 de Maio desse ano e surpreendeu o Faraó do Egipto calculando a altura da pirâmide de Kuéope a partir da sombra projectada por uma vara espetada no chão.

Tales era mais velho que Heraclito que nasceu em 540 AC e ainda era menino quando o primeiro faleceu o que permitiu que o seu pensamento sobre o dinamismo das coisas fosse retomado e problematizado por este último.

Como se diria hoje, quase tudo o que foi gente importante daquela época, imperadores, sábios, filósofos, apóstolos, políticos, viveu ou passou por Epheso e a marca que lá deixaram é a marca que nós hoje ainda transportamos na nossa sociedade, a própria ideia da democracia é de Heráclito, no nosso pensamento de carácter científico e nas nossas convicções religiosas relacionadas com o Cristianismo.

Mas a importância desta cidade e as imagens magníficas das suas ruínas podem facilmente ser observadas na Internet e nos livros mas para nos sentirmos, através de um pequeno exercício de imaginação, a passear ao fim da tarde, ao lado destas célebres figuras, vestindo como elas as túnicas da época acompanhados da família e dos escravos, é preciso ir lá e pisar as lajes hoje polidas e desgastadas da avenida por onde eles passavam.

Mais uma sensação estranha mas esta agradável de reencontro com o passado, um passado recente na história da humanidade, importante e decisivo para aquilo que hoje somos do ponto de vista cultural, político e religioso.


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