domingo, dezembro 26, 2010

DONA

FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 303


A saleta onde os recebeu onde os recebeu tinha flores num vaso e escarradeiras. Depois de ouvi-los, ali os deixou com seu marido e ajudante; foi orar na sala da levitação e da vidência. O marido, Mister Marcos, também jovem, com ar simpático de malandro diplomado, explicou nada cobrar Josete pelos benefícios distribuídos aos pobres por intermédio de sua mediunidade. Tudo gratuito, os espíritos não aceitavam nada e Josete recebia apenas o estritamente necessário para as injecções e os remédios (tudo tão caro hoje, a vida subindo de tal forma) com que refazer a saúde abalada após cada sessão, ao despender ectoplasma – e ela não fazia economia, como os senhores constatarão pessoalmente – seu organismo, já de si frágil, atingia o extremo da debilidade, com perigo de vida, Pelancchi, cheio de esperança e pena, foi generoso, e Mister, e Mister Marcos embolsou.

Na outra sala – a dos fenómenos – forrada cortinas roxas, era quase total a escuridão. De robe branco, estendida numa cadeira, Josete com seus fluidos, o marido ordenou aos quatro – Pelancchi, Zulmira, Domingos Propalato e Máximo – que se dessem as mãos para estabelecer a corrente do pensamento. Assim fizeram e uma pequena lâmpada, única na sala, se apagou.

Logo tiniram campainhas, ouviram-se guinchos com miados, e uma luz andou nos ares em volta das cortinas, arrancando um grito histérico de Zulmira.

Quanto a Pelancchi, nem gritar podia, e Propalato, trémulo, suava, os dentes apertados. Aquela luz e aqueles guizos eram o próprio Irmão Li U, sábio chinês da dinastia Ming, absolutamente autêntico. Segundo Máximo Sales, incorrigível, em vez do sábio Li U, luz e som não passavam do sabidório Marcos, um vivo a gozar boa vida às custas daquele lindo ectoplasma. Mas, sendo Máximo Sales língua de trapo e incréu, suas opiniões não têm valor nem merecem maior crédito e aqui as consignamos tão-somente para manter a exactidão da narrativa.

Crédito e confiança merece Josete, toda dissolvida em ectoplasma e falando uma língua estranha, como de menino, talvez chinês antigo ou mais possivelmente de Macau, pois dava para se entender com certo esforço. Segundo o sábio Li U, a causa de toda a confusão era uma dona, itálica e rancorosa, a quem Pelancchi fizera uma falseta.

- Loira ou morena? – perguntou o calabrês.

- Morena e bonita, uns vinte e cinco anos…

- Vinte e cinco? Quase quarenta, e era uma víbora. Não me cabe culpa… Por favor, cara amiga, diga ao chinês que eu não tive culpa…

Se chamava Anunciata, parecia perseguida e ingénua signorina, buscando protecção: oh!, que putana mais putana. Ele, sim, Pelancchi, era então um ragazo, povero ragazo de dezessete anos…

e as quNo ímpeto desses ludibriados dezassete anos, marcara com uma flor de sangue o rosto da traidora, acrescentando uns cortes pelo queixo, de quebra e malvadez. Sendo menor, escapou Pelancchi da cadeia, enquanto Anunciata, no hospital, jurava vingança, viva ou morta. Agora, tantos anos depois, vinha cumprir sua promessa de ódio naquele dramalhão italiano. Anunciata, seu primeiro amor: tão carina, tão putana.

Pelancchi, ainda hoje, não se arrepende do que fez. Mulher sua não é para ser também de outro, é sua e demais ninguém. Zulmira se encolhe no escuro: cada perigo nesse mundo!

O sábio chinês, por mais algumas caixas de injecção, livrou Pelancchi da lembrança de Anunciata e de seu ódio. Para os detalhes materiais, como preço e pagamento, serviu de intermediário Mister Marcos, mediador das almas e gerente espiritual daquela tenda. Foi-se Anunciata com sua flor de sangue ebras pelo queixo, mas não se foi o azar.

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