sábado, março 26, 2011

TEREZA
BATISTA
CANSADA

DE

GUERRA

Episódio Nº 65



Era uma vez eu ia encurtando caminho pela mata, na encruzilhada da noite escutei o tropel da Mula-Sem-Cabeça. Não vou mentir nem contar prosa, só de vislumbrar o bicho sem cabeça, um fugaréu no lugar, perdi acção e brio, me pus a fita: valei-me meu padrinho padre Cícero, livrai-me do mal, amem.

A ele devo a vida e a esse breve invencível que carrego no pescoço. A maligna passou a trezentos metros, não sobrou nada em redor, tudo esturricado, mato e capim, pé de pau e cascavel, plantação de mandioca, lavoura de cana. Atente vossa senhoria: basta falar em assombração, muito macho se borra.

Com ânimo de enfrentar mal-assombrado somente a mencionada Tereza Batista e com isso respondo à indagação do distinto desejoso de saber se a moça merece toda essa fama de valentia. Enfrentou e combateu – e se o amigo duvida da minha palavra, é só inquirir dos presentes.

Não correu nem pediu perdão, e se clamou por socorro, na hora fatal ninguém lhe acudiu, sozinha se achou, não houve jamais menina tão sozinha, abandonada de Deus e do povo da terra. Foi assim que fechou o corpo: Tereza Corpo Fechado, fechado para a bala, punhal e veneno de cobra.

Mais não digo nem acrescento, pois tenho ouvido contar esse caso verdadeiro com muita variação de ideia; cada um desvenda o enredo à sua feição, pondo e dispondo, mudando pedaços, ajuntando regras e enfeites. Um trovador alagoano, decerto no espanto de tão grande façanha e querendo lhe dar regra e razão, disse que Tereza ainda novinha vendeu a alma ao diabo e muita gente acredita. Outro trovador brasileiro, Luís da Câmara Cascudo de novo e fama, à vista de tanta atrocidade e solidão, pôs uma flor na mão de Tereza, flor que é rima de dor, flor para rimar com amor.

Cada qual conta conforme sua competência de contador, mas no principal todos ficam de acordo: por ali nunca mais apareceu alma penada, com as penas da vida basta e sobra.

Tudo pode ser, não afianço, não contesto, nada me espanta, de nada duvido, não tomo partido, não dou daqui, vim de fora. Mas veja vossa senhoria, meu distinto, como o mundo é duvidoso – a Tereza que eu conheci e dela posso testemunhar, de alcunha Tereza da Lua Nova, era da cor e da natureza do mel, cantava modinhas, mais pacata e mansa, mais terna e dengosa.


14


De volta do ribeirão, sobe dona Brígida falando sozinha, cercada de sombras. No meio da ladeira os gritos a alcançam, interrompem-lhe o monótono discurso; mais uns passos e enxerga a menina presa pelos braços e pelas pernas, a debater-se nas unhas do capitão e de Terto Cachorro.

Esconde-se atrás da mangueira, aperta a criança contra o peito, volta-se para o céu, murmura pragas, um dia Deus há-de olhar para tanta maldade e mandará o castigo. Quando chegar o fim de sua pena.

Os gritos explodem em seu peito, disparam-lhe o coração: dilatam-se os olhos, tranca-se a boca, altera-se a face, transforma-se dona Brígida e se transforma o mundo a cercá-la. Quem sujeita a vítima pelos braços não é mais Justiniano Duarte da Rosa, seu genro, dito capitão Justo; é o Porco descomunal, monstruoso demónio. Alimenta-se de meninas, chupa-lhes o sangue, mastiga-lhes a carne fresca, tritura-lhes os ossos. O Lobisomem o ajuda, vassalo abjecto fareja e levanta a caça para o amo, cachorro principal da matilha de malditos. Falso e velhaco, à menor distracção do Porco devorará as meninas; covarde, contenta-se com carniça.
Dona Brígida nessas horas advinha o pensamento, vê por dentro, há muito esse dom lhe foi concedido. (clik na imagem)

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