sábado, setembro 03, 2011

TEREZA


BATISTA


CANSADA


DE


GUERRA





Episódio Nº 196



Os olhos penetrantes do doutor, abertos, a observar padre Vinícius no temor de Deus, atormentado de dúvidas – não parecem olhos de um morto. O pecado maior do doutor não tinha sido aquele, cabia razão ao médico. Descrente, ímpio e, se necessário, impiedoso, entrincheirado no orgulho.

Tendo-o visto no seio da família, o padre vislumbrou a solidão e o desencanto e deu-se conta do preciso significado de Tereza – não apenas amásia formosa e jovem de senhor idoso e rico; amiga, bálsamo, alegria. Esse mundo de Deus, mundo torto do Demónio, quem o pode entender?

- Deus há-de te ajudar, Tereza, nesse transe.

Os aflitos olhos do padre abandonam os olhos argutos do doutor, percorrem o quarto. Pelas mesas livros e objectos múltiplos, um punhal de prata; na parede um quarto com mulheres nuas entre as ondas do mar. O espelho enorme, impúdico, a reflectir a cama. Apenas uma rosa nas mãos do morto.

Quarto vazio dos atributos da fé, desolado como o coração de Emiliano Guedes, bem a seu gosto, despido de enfeites fúnebres; assim Tereza o conservara. Mas a família vai chegar, Tereza, a qualquer momento, gente religiosa, leva muito em conta as formalidades do culto e das aparências. Vamos permitir que os parentes encontrem o cadáver do chefe da família sem um sinal sequer da sua condição cristã? Mesmo sendo descrente, era cristão, Tereza, mandava celebrar missa na usina, assistia ao lado da esposa, dos irmãos, das cunhadas, dos filhos e sobrinhos, do pessoal do engenho e dos campos, de gente vinda de longe. Na frente de todos, ele, de pé, dando o exemplo.

- Não acha, Tereza, que seria bom acender ao menos duas velas aos pés do nosso amigo?

- Como o senhor queira, padre. Mande o senhor mesmo.

Ah, Tereza, por tua boca as velas não serão pedidas, por tuas mãos não serão postas nem acesas! Tu e o teu doutor, poços de orgulho. Piedade, senhor! Implora o padre, e eleva a voz:

- Clerêncio, Clerêncio, venha cá! Traga castiçais e velas.

- Quantas?

O padre olha para Tereza outra vez absorta, distante, indiferente ao número de velas, vendo, ouvindo e sentindo apenas o doutor e a morte.

- Traga quatro…

Na sombra da noite move-se o sacristão ao coaxar dos sapos.

21

Não ficara marca exposta e, exceptuando-se o doutor, pessoa alguma percebeu jamais resquício de amargura no comportamento de Tereza, como se ela houvesse riscado da memória a lembrança do ocorrido. Não voltaram ela e Emiliano a comentar o assunto. Muito de raro em raro, porém, perdiam-se no vácuo os olhos de Tereza, o pensamento longe e o doutor se dava conta da sombra fugidia logo encoberta por um sorriso.

Ah! poderosa ausência a daquele que não chegara a ser presença visível, apenas pressentida no violado ventre de onde os ferros do médico o arrancaram a mando do usineiro. (clik na imagem e aumente)

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