ISABEL – Rainha Santa de Portugal
Um dia, entre os pobres que enxameavam
às portas do Paço de Coimbra para receber esmola, um deles, muito chagado,
muito miserável, a cair da boca aos cães, dissera, interrogado pelo padre
esmoler, que era também um pobre de espírito:
-
Só me apetece a morte. Não, apetecia-me – sabe o quê senhor padre – era ir
dormir a sesta, escarrapachado, muito bem escarrapachado, na cama d’el-rei.
Estou persuadido, que se satisfizesse este gostinho, voltava a ser o que era,
recobrava a saudinha e a vontade de viver.
Embora o clérigo notasse o extravagante
de tal pedido a fazer lembrar gostinho de mulher grávida, foi com ele à rainha.
E vai ela – inflamada em amor do próximo, na fé cristã de humilhação, que se
traduzia quase sempre pelo recalcamento da sua humanidade, levou o imundo
pedinte para o leito conjugal.
Rompeu logo uma grande murmuração por
entre as bocas alcoviteiras do Paço e eis que em breve chegou a D. Dinis a
notícia estupenda.
Podia lá ser?!
Tanto podia que, entrando ele nos
aposentos, defrontou-se-lhe aquele torpe espectáculo de uma cena pouco própria
de um lázaro, esquálido, piolhoso a refocilar–se nos lençóis de bretanha,
apaparicado pela rainha, com todas as tochas acesas, como se houvesse ali um
himeneu.
Ia o rei fulminar o desgraçado recostado
nas almofadas de rendas sob o docel de brocados quando a dúvida se instala no
seu espírito que o deteve como uma mola secreta:
-
Quem estava ali era o mendigo nojento ou Jesus Cristo Crucificado?
Isabel era discreta, mas imprudente
naqueles seus rasgos de incendiada caridade. Formosa, senhora de toda a graça e
elegância mas destituída de sensualidade e paixão. Violino sem cordas; agua
branca, purinha, sem paladar, iguaria sem sal nenhum mas, naquele ambiente de intrigas
e mal-dizer em que a corte era fértil, nem ela esteve a salvo de um certo
escudeiro que por inveja ou qualquer outro sentimento íntimo, foi acusá-la a
el-rei.
-
Senhor, não me parece bem a familiaridade que o pajem da rainha desfruta junto
da sua real pessoa. Perdoai que vo-lo diga mas sou tão cioso de vossa honra e
dignidade que até das sombras tenho medo.
D. Dinis, atentou com olhos torvos,
retrospectivos, nas relações que havia entre os dois e a suspeita de que fossem
eivadas de malícia nasceu na sua alma.
Pelo que, minado pelos mais ruins
pensamentos, planeou no foro íntimo a morte do intrometido mas de tal forma que
não deixasse qualquer rasto ou indício.
Foi-se a um forno de cal em actividade,
que havia nos arredores de Coimbra e, dando-se a conhecer, disse a um dos
forneiros:
-
Amanhã, quando vier aqui um criado
do Paço e perguntar. “cumpristes las ordens”, pegas nele e zás, fornalha com
ele. Em seguida mandar-me-ás dizer se estão “cumpridas las ordens”. Agora, nem
chás nem bus se tens amor à pele!
No dia seguinte largou logo de manhã do
Paço o moço da rainha com o capcioso recado. Como quer que fosse – explica a
crónica de Damião Cornejo que este pagem por ser muito dado a rezas, se
detivera no caminho a ouvir quatro missas que, por coincidência se seguiram
umas às outras – demorou-se tanto que o monarca, cheio de impaciência, não
tendo chegado o portador que esperava chamou o denunciante:
-
Vai-me ver onde ficou o pagem da rainha que mandei ao forno de cal.
Largou o criado em pés de gamo e, como
até àquela hora o verdadeiro mensageiro ainda não tivesse ainda chegado ao forno de cal, os forneiros tomaram um pelo
outro. Deitando-lhe a unha, jogaram-no às labaredas que breve o fizeram num
torresmo.
D. Dinis, quando lhe levaram a nova e
desceu ao fundamento do sucesso, entreviu o dedo do Senhor. E deixou dali em
diante em duvidar em seu coração impulsivo de Isabel, a virtuosa e fiel mal
casada.
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