sábado, dezembro 22, 2012


ISABEL Rainha Santa de Portugal

Um dia, entre os pobres que enxameavam às portas do Paço de Coimbra para receber esmola, um deles, muito chagado, muito miserável, a cair da boca aos cães, dissera, interrogado pelo padre esmoler, que era também um pobre de espírito:

 - Só me apetece a morte. Não, apetecia-me – sabe o quê senhor padre – era ir dormir a sesta, escarrapachado, muito bem escarrapachado, na cama d’el-rei. Estou persuadido, que se satisfizesse este gostinho, voltava a ser o que era, recobrava a saudinha e a vontade de viver.

Embora o clérigo notasse o extravagante de tal pedido a fazer lembrar gostinho de mulher grávida, foi com ele à rainha. E vai ela – inflamada em amor do próximo, na fé cristã de humilhação, que se traduzia quase sempre pelo recalcamento da sua humanidade, levou o imundo pedinte para o leito conjugal.

Rompeu logo uma grande murmuração por entre as bocas alcoviteiras do Paço e eis que em breve chegou a D. Dinis a notícia estupenda.

Podia lá ser?!

Tanto podia que, entrando ele nos aposentos, defrontou-se-lhe aquele torpe espectáculo de uma cena pouco própria de um lázaro, esquálido, piolhoso a refocilar–se nos lençóis de bretanha, apaparicado pela rainha, com todas as tochas acesas, como se houvesse ali um himeneu.

Ia o rei fulminar o desgraçado recostado nas almofadas de rendas sob o docel de brocados quando a dúvida se instala no seu espírito que o deteve como uma mola secreta:

 - Quem estava ali era o mendigo nojento ou Jesus Cristo Crucificado?

Isabel era discreta, mas imprudente naqueles seus rasgos de incendiada caridade. Formosa, senhora de toda a graça e elegância mas destituída de sensualidade e paixão. Violino sem cordas; agua branca, purinha, sem paladar, iguaria sem sal nenhum mas, naquele ambiente de intrigas e mal-dizer em que a corte era fértil, nem ela esteve a salvo de um certo escudeiro que por inveja ou qualquer outro sentimento íntimo, foi acusá-la a el-rei.

 - Senhor, não me parece bem a familiaridade que o pajem da rainha desfruta junto da sua real pessoa. Perdoai que vo-lo diga mas sou tão cioso de vossa honra e dignidade que até das sombras tenho medo.

D. Dinis, atentou com olhos torvos, retrospectivos, nas relações que havia entre os dois e a suspeita de que fossem eivadas de malícia nasceu na sua alma.

Pelo que, minado pelos mais ruins pensamentos, planeou no foro íntimo a morte do intrometido mas de tal forma que não deixasse qualquer rasto ou indício.

Foi-se a um forno de cal em actividade, que havia nos arredores de Coimbra e, dando-se a conhecer, disse a um dos forneiros:

 - Amanhã, quando vier aqui um criado do Paço e perguntar. “cumpristes las ordens”, pegas nele e zás, fornalha com ele. Em seguida mandar-me-ás dizer se estão “cumpridas las ordens”. Agora, nem chás nem bus se tens amor à pele!

No dia seguinte largou logo de manhã do Paço o moço da rainha com o capcioso recado. Como quer que fosse – explica a crónica de Damião Cornejo que este pagem por ser muito dado a rezas, se detivera no caminho a ouvir quatro missas que, por coincidência se seguiram umas às outras – demorou-se tanto que o monarca, cheio de impaciência, não tendo chegado o portador que esperava chamou o denunciante:

 - Vai-me ver onde ficou o pagem da rainha que mandei ao forno de cal.

Largou o criado em pés de gamo e, como até àquela hora o verdadeiro mensageiro ainda não tivesse ainda chegado  ao forno de cal, os forneiros tomaram um pelo outro. Deitando-lhe a unha, jogaram-no às labaredas que breve o fizeram num torresmo.

D. Dinis, quando lhe levaram a nova e desceu ao fundamento do sucesso, entreviu o dedo do Senhor. E deixou dali em diante em duvidar em seu coração impulsivo de Isabel, a virtuosa e fiel mal casada.

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