segunda-feira, maio 06, 2013

O CANCRO 

 (Estratégia de Vistas Curtas...)



Não, o cancro não é consequência do ataque ao nosso organismo de um qualquer vírus ou bactéria como acontece em tantas outras doenças com a Imunodeficiência (HIV) ou H1N1 do actual surto de gripe.

No caso particular do cancro é o nosso organismo que se coloca contra si próprio revelando uma grande estreiteza de vistas pois dando cabo do corpo põe termo a si próprio.

Concretamente, o cancro é uma linhagem de células mutantes (resultantes de erros de cópia no processo de substituição das células chamados mutações) bem sucedidas e o facto de poderem acabar por se destruírem a si próprias juntamente com o corpo a que pertencem, é absolutamente irrelevante porque a evolução que tem lugar dentro de nós não faz previsões, é um simples processo mecânico por meio do qual algumas formas surgem, competem com outras e saem vencedoras na base de interacções imediatas.

Para compreender o cancro temos de pensar num organismo único, o nosso próprio corpo, com uma vasta população de células todas com o mesmo conjunto de genes, excepto no que respeita às mutantes (que resultam dos tais erros de cópia que ocorrem no processo de divisão das células).

A maioria destas células é rapidamente detectada e destruída pelo nosso sistema imunitário que actua como uma força policial de uma eficácia implacável.

A qualquer hora da noite batem à porta e levam os desgraçados dos mutantes.

Todavia, uma pequena fracção consegue escapar à polícia e tornarem-se heróis combatendo pela liberdade, resistindo à tirania do Estado.

Mas esta não é a melhor perspectiva para pensarmos sobre os mutantes. É preferível olhar para eles como “organismos-presas” que evoluem para evitar os predadores.

É como numa floresta: as aves retiram a maioria dos insectos, aqueles que mais sobressaem, que dão mais nas vistas e deixam os que se confundem com o meio ambiente.

No corpo humano, em lugar das aves, está o sistema imunitário a retirar as células mutantes, as que mais se destacam, deixando as que não se detectam para sobreviver e crescer em minúsculas populações.

Neste momento, no meu e no seu corpo existem centenas de populações mutantes as quais, na qualidade de “organismos-presa” se adaptaram e sobreviveram. Por isso mesmo, elas têm de competir pelos recursos com as células normais suas vizinhas.

Estas populações mutantes permanecem reduzidas e têm pouca importância para o organismo como um todo não ajudando nem prejudicando.

Contudo, o relógio mutacional (o tal que comete erros de cópia) continua a trabalhar e outros mutantes surgem em algumas das populações tornando-as mais agressivas na competição com as células vizinhas normais.

Assemelham-se àquelas plantas daninhas que se expandem produzindo uma toxina que elas conseguem aguentar mas não as plantas vizinhas e assim, as populações duplamente mutantes, expandem-se agressivamente e tornam-se tumores incipientes.

No entanto, estes tumores que evoluíram de modo a enfrentarem os predadores e competidores têm um novo factor que impede a sua continuação e expansão.

É que elas, ao alimentarem-se, produzem desperdícios que são retirados pelos vasos sanguíneos juntamente com os desperdícios das células normais o que, naturalmente, tem os seus limites a menos que o tumor incipiente consiga recrutar para si vasos sanguíneos da mesma maneira que as células normais. Até lá, não pode crescer para além de determinadas dimensões.

As instruções genéticas para recrutar vasos sanguíneos evoluíram há muito tempo como parte do desenvolvimento normal e tudo o que a célula mutante do tumor incipiente tem de fazer é activar essas instruções o que é relativamente simples e assim, desta forma, os tumores adaptam-se aos desafios, mutação após mutação, exactamente da mesma maneira que os organismos que vivem em liberdade como as aves ou os peixes se adaptam ao ambiente.

O facto de haver outras doenças provocadas por organismos estranhos ao corpo humano, como o vírus da imunodeficiência (HIV), enquanto um tumor deriva das nossas próprias células, não faz qualquer diferença. Em ambos os casos eles sobrevivem dentro do nosso corpo, não contribuem para o nosso bem-estar e vão avançando a um ritmo constante como bombas relógios mutacionais.

A evolução do cancro, como já foi referido atrás, parece o cúmulo da estreiteza de vistas. Cada “avanço” mutacional que permite a uma linha celular evitar os seus “predadores” (sistema imunitário), vencer os seus competidores (as células que funcionam normalmente) e colonizar outras zonas do corpo (metástases) fá-lo aproximar mais da sua própria morte.

Mesmo um tumor benigno, desaparecerá com a morte do organismo pois não existe nenhum mecanismo que lhe permita passar de um corpo para outro.

Esta evolução “dentro” do organismo é incapaz de impedir esta inutilidade e por isso falámos de “vistas curtas”.

Só a evolução “entre organismos” pode criar um desfecho de “vistas largas” de células que colaborem para o bem comum.

Felizmente o cancro, por força da selecção actuar de forma tão vigorosa a este nível e durante tanto tempo, é uma doença rara que se manifesta sobretudo em idades já avançadas.

Fica-nos esta observação:

- A selecção dentro dos grupos favorece as estratégias de vistas curtas enquanto a selecção entre grupos é necessária para criar o desfecho de vistas largas dos organismos que colaboram para o bem comum.

- Se a selecção entre os grupos vence a selecção dentro dos grupos de uma forma tão decisiva, da mesma forma que a selecção entre organismos vence a selecção dentro dos organismos, a uma outra escala biológica podemos dizer que se nos conseguirmos extinguir como espécie será devido ao mesmo tipo de estreiteza de vistas que leva as células cancerosas a acelerarem a sua própria morte.

David Sloan Wilson (Prof. de Biologia e Antropologia) – A Evolução Para Todos

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