sexta-feira, dezembro 06, 2013

Lembranças

 da


Guerra


Colonial






As guerras têm uma componente humana que não interessa à análise política ou histórica e que na sua quase totalidade se esquece com o desaparecimento dos protagonistas ou descendentes quando, por vezes, alguns deles, ainda recordam as histórias da guerra que o pai ou avô contavam.

Esta componente humana determina que cada guerra se desmultiplique em tantas guerras quantos aqueles que nela participaram porque ela constitui uma experiência única, diferente em função da sensibilidade de cada um e do que a cada um acontece. Pior, aqueles que nada contarão porque ficaram lá.

Fonte inspiradora por excelência de romances, o palco da guerra tem todos os condimentos para seduzir o leitor que procura num livro, emoção, aventura e sentimentos quer sejam eles de coragem, covardia, de simples espírito de sobrevivência ou uma mistura de todos eles.

Na manhã do dia 9 de Novembro de 1962 a marginal de Luanda regurgitava com as centenas de militares, mais de mil, que tinham desembarcado naquele dia do Paquete Vera Cruz. Ia começar a guerra... o palco estava a dois passos, um palco desconhecido, diferente das planícies alentejanas ou ribatejanas, das encostas das montanhas do norte ou do centro do país, sem mar, sem praias... apenas o verde de uma vegetação imensa, compacta, assustadora.

Três Batalhões, para além de Companhias Independentes, desciam pelo portaló do convés do navio, sendo certo que as expressões dos soldados demonstravam mais alívio pelo fim da viagem do que medo daquilo que os esperava.

Eram poucos os que antes da mobilização tinham saído da sua aldeia natal num Portugal acentuadamente rural e em grande parte analfabeto.

Mas a juventude é uma fonte de vida e de esperança e quem ouvisse o cruzar de tantos gritos e falatório perguntaria, senão soubesse, se eles iam para a guerra ou para uma festa… ou talvez fosse apenas uma maneira de se animarem uns aos outros para não pensarem na sorte que os esperava e que eles também não sabiam bem qual era.

Para já, iria ser o Campo do Grafanil, nos subúrbios de Luanda, imenso quartel ao ar livre onde as camionetas GMC e Berliettes, estas construídas na Fábrica do Tramagal, ali para os lados de Abrantes, levariam as Unidades ao seu destino sem que antes, porém, nessa noite, exércitos de mosquitos plenos de energia própria da época das chuvas, não partissem ao assalto dos corpos ávidos de sangue fresco acabado de desembarcar, num primeiro teste de adaptação a esse misterioso e envolvente continente africano.

Nós, os Alferes, e aqui ficam os seus nomes: Rocha – já falecido – Ataíde, emigrado para o Canadá de há muitos anos, Frederico Melo, Paula de Matos e Dória Nóbrega, o médico da Companhia, nessa primeira noite da chegada a Luanda, fomos convidados pelo no nosso Capitão Machado Monteiro que nos foi esperar ao barco, para jantar no Grande Hotel Universo.

Este Capitão não pertencia ao Quadro Permanente do Exército. Dada a escassez de oficiais do Quadro ao nível de capitães eram feitos convites a oficias milicianos para tirarem o Curso de Capitães e seguirem posteriormente a carreira militar.

Deixem-me recordar este senhor que tivemos a satisfação de o rever, no almoço anual da nossa Companhia, já este ano, nos seus desempenados 82 anos.

Ficou para a história da “nossa guerra” como o “120”, mas eu explico:

 - Na guerra subversiva o inimigo tinha as suas preferências e alvejava, naturalmente, os militares mais graduados. Por isso, os camuflados eram iguais para todos sem nada que os distinguisse e aqueles militares que usavam óculos tiravam-nos durante as operações para não serem confundidos com oficiais que terão gasto a vista a estudar...

Por tudo isto, o nosso capitão impunha aos soldados que, no mato, em operações, ele não era capitão, era o …120!

Apresentou-se ao jantar, no Hotel, numa figura que antecipava aquela que viria a ser a do Rambo, com a faca de mato e granadas penduradas à cintura e um desembaraço que nos impressionou.

Durante a viagem para o Úcua, a 160 km de Luanda, onde ficaríamos nove ou dez meses, dormitava, ou fingia, ao lado do condutor do jeep numa atitude misto de confiança e displicência própria dos heróis do Western, tipo John Wayne.

Quando chegámos decidiu “brindar-nos” com uma volta de reconhecimento à povoação mas fê-lo com uma condução tão desastrada que senão o tivéssemos agarrado por um braço teria caído do jeep.

Era um homem muito medroso e só saía para o mato na companhia do Ataíde, de todos, o único Alferes que a ele lhe oferecia mais “garantias” de protecção. Pretendendo alardear uma coragem e valentia que não possuía caía facilmente no ridículo porque os soldados podiam ser analfabetos mas não eram parvos.

Tivemos sorte, apesar de tudo, porque dos três Batalhões que viajaram connosco o nosso terá ficado no local menos perigoso pois em quase um ano que ali estivemos não se registou a explosão de uma única mina nas estradas da nossa área de intervenção e as minas, para além das emboscadas, eram a grande causa de mortes e principalmente de estropiados.

“Fugimos” das minas mas não evitámos uma emboscada minuciosamente preparada pelo inimigo a uma coluna de uma outra Companhia do nosso batalhão que nos era vizinha, instalada no Pango Aluquém.

 O meu amigo “Setúbal” – grande número dos soldados eram conhecidos pelo nome da terra de onde eram naturais – pagou o preço supremo quando, sentado atrás da sua metralhadora Breda, no Unimog, caiu na "zona de morte " da emboscada que lhes foi montada e foi atingido por um tiro na cabeça.

Foi o melhor soldado da recruta que dei em Évora, no Regimento de Infantaria 16, ainda em 1961, antes de embarcar.

Era casado, tinha a 4ª Classe -  era quase licenciatura nessa época -  uma filha, e trabalhava como empregado de mesa. Eu só lhe dava autorização para responder às perguntas quando nenhum dos seus camaradas sabia a resposta.

Era um primor de simpatia, educação e inteligência mas, infelizmente, quando foram divididos pelas três Companhias do Batalhão, ficou na 389 quando a minha era a 388. Fiquei privado da sua presença junto de mim e ele privado da vida o que foi bem pior. Pormenores do acaso fazem a diferença entre o viver e morrer. E  assim, fiquei no Úcua e ele foi parar ao Pango e àquela maldita emboscada. 

Creio que foi em Março de 1962, eu seguia de jeep do Úcua para o Pango e já relativamente próximo do destino apercebi-me que na estrada, mais à frente, algo se estava a passar.

Um Unimog, com uma metralhadora Breda para dar protecção a um grupo de trabalhadores que reparavam a estrada tinha caído numa emboscada montada numa curva da estrada e o inimigo, julgando que o meu jeep que se aproximava em sentido contrário, fazia parte de um reforço de tropas chamado pela rádio para ajudar os camaradas em apuros, fugiram em debandada deixando para trás, para além dos nossos soldados apanhados pelas balas, um cadáver e uma pistola metralhadora.

O meu amigo “Setúbal” e mais três colegas estavam mortos, dois desapareceram para sempre. Uma bala disparada a curta distância acertou-lhe a meio da testa…felizmente não sofreu.

Os restantes foram igualmente mortos à queima-roupa com excepção de um que sobreviveu apenas porque se atirou da viatura e fingiu estar morto, deitado de barriga para baixo, no meio do capim que o escondeu. Essa simulação valeu-lhe a vida e um louvor.

Nem sempre os heróis se fazem de coragem e valentia. Neste caso, a astúcia e o sangue frio… e o meu jeep que apareceu providencialmente em sentido contrário foram decisivos para a sua sobrevivência.

Com uma perna partida em consequência da queda do Unimog conseguiu manter-se imóvel não obstante as dores que sentia que não eram, no entanto, tão fortes como a vontade de se manter vivo. A chegada inesperada do meu jeep como factor surpresa pôs termo à situação em que para ele cada segundo parecia uma eternidade.

A bala que atingiu o “Setúbal” em cheio, na cabeça, perfurou-me a mim a alma. A minha tensão arterial baixou para 4/8 e as noites seguintes passei-as junto dos sentinelas, em silêncio, como se cada um deles fosse o meu amigo de quem não me queria separar... Na verdade, não conseguia dormir, todos nós tínhamos morrido um pouco com os nossos camaradas falecidos.

Este texto é dedicado ao “Setúbal”, esse jovem cheio de qualidades, decerto um cidadão exemplar, mais um que aquela guerra privou da vida a que tinha direito subtraindo-o ao seu país, à sua família e a todos nós.

Não vale a pena perder tempo a odiar os culpados tantos são e continuarão a ser os “senhores das guerras” em todo o mundo. Um deles, o nosso, caiu de uma cadeira e morreu uns tempos depois…

Prefiro recordar com saudade e amizade o meu amigo “Setúbal” de quem nunca me esqueci ao longo de mais de cinquenta anos!

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