MURMÚRIOS
Não sei se conhecem o romance de Lídia Jorge “A Costa dos Murmúrios” ou viram o
filme com o mesmo título que há anos passou na televisão, muito bem realizado
por Margarida Cardoso.
Esta obra conta a história, complexa do ponto de vista
humano, social, político e militar que se passou em Moçambique, na cidade da
Beira, nos anos que antecederam o fim do regime anterior.
A
própria cidade da Beira serviu de cenário às filmagens e a interpretação,
especialmente da personagem feminina mais importante, Évita, que na história
foi para Moçambique para casar com o Alferes Silva, é tão convincente e real
que bem poderia ter sido um simples documentário arrancado aos eventos daquela
época e naquele sítio.
Eu vivia lá, naquela cidade, pelas alturas em que a história
tem lugar. Anos antes tinha feito a guerra de Angola pelo que conhecia, por
experiência própria, as contradições de uma guerra que se queria que fosse
patriótica e que redundou num tremendo equívoco que abalou as consciências de
muitos que nela participaram.
As guerras não se desejam mas se têm que acontecer que sejam
por causas nobres. Se tem que se lutar e morrer numa guerra, que seja pela
liberdade, pela justiça e aqui
residiu o grande equívoco da guerra colonial que travámos.
Quem lutava pela liberdade era o nosso inimigo, aqueles que
combatíamos. Nós estávamos, simplesmente, do lado errado…
Foi
a guerra das mentiras para a qual os jovens portugueses foram arrastados
durante treze anos. Treze anos durante os quais os nossos políticos e generais
nos ocultaram a verdade ou mentiram deliberadamente como o fez esse senhor
general Kaúlza de Arriaga que, nos anos 70, concebeu e executou no Norte de
Moçambique uma pomposa operação militar denominada Nó
Górdio que envolveu milhares de soldados e se saldou pelo mais
completo e rotundo fracasso militar.
Não
tendo conseguido o factor surpresa, base do sucesso de todas as operações
militares deste género, limitou-se a encontrar os velhos, mulheres e crianças
do costume que constituíam, quase sempre, os nossos grandes troféus de guerra.
O
espavento de que a operação se rodeou estava, de resto, de acordo com a vaidade
do general e funcionou como trombetas de aviso para todos os guerrilheiros
daquela região se afastarem por uns dias e deixarem passar as tropas do grande
estratega...
Não obstante, chegado a Lisboa, deu uma conferência de
imprensa, como agora se diz mas sem direito a perguntas... e em horário nobre,
pela televisão, disse aos portugueses, com o mapa de Moçambique à frente (recordo-me
perfeitamente) para emprestar maior veracidade às mentiras, e explicou como
tinha conseguido derrotar o inimigo, expulsá-lo para fora das nossas fronteiras
e praticamente ter acabado com a guerra... que seria vencida por Samora Machel
uns tempos depois quando cercou a cidade da Beira excepção feita ao ar e à
agua.
Mas estas mentiras não podiam ser contadas aos militares que
faziam as operações no terreno entre eles o Alferes Silva e o capitão Forza
Leal da história do nosso filme.
As suas personalidades perturbadas que procuravam um rumo, uma
orientação para as suas vidas e que poderiam ter sido resgatadas numa guerra em
que se lutasse e morresse por valores e ideais verdadeiramente patrióticos,
acabaram por se afundar numa pseudo guerra de mentiras, vaidades e cobardias
que sacrificaram aqueles que a tiveram de fazer.
O
Alferes da nossa história da Costa dos Murmúrios suicidou-se e o capitão, que
se achava a si próprio um “duro” combatente, sai de cena depois de queimar no qui ntal da sua casa, receoso e envergonhado, as
fotografias e os relatórios das acções militares em que tinha participado e que
o poderiam vir a comprometer servindo de matéria acusatória num eventual
Tribunal de Crimes de Guerra.
Évita,
sofre com a revelação do verdadeiro homem com quem tinha casado. Afinal, não
era o jovem matemático que até tinha descoberto uma nova fórmula, mas apenas um
homem sem carácter que seguia disciplinado e obedientemente o “duro” do seu capitão
e escrevia letras pífias para o hino da Companhia enquanto dava tiros nos cus
das galinhas.
Só
num meio completamente estranho, onde quase toda a gente se confrontava com
dramas na sua vida, Évita bem poderia ter sido aquela mulher que sem nunca me
ter visto passou a telefonar-me para o Serviço para conversar. De auscultador
entalado entre o ombro e a cabeça, enquanto assinava incontáveis papéis ia
ouvindo e falando.
Ela
admirava-se da paciência que eu tinha por ficar conversando com ela, assim,
durante tanto tempo e eu respondia-lhe que era fácil quando se gostava das
pessoas.
- De todas as pessoas? - perguntava ela
admirada - e porque não, respondia-lhe, não têm todas, tal como eu,
nariz, dois olhos, boca e orelhas?
Um
dia telefonou-me, estava no hospital, tinha tentado pôr termo à vida.
Parei
o que estava a fazer e fui visitá-la. Vi-a então pela primeira vez. Estava
acamada, era uma jovem inexperiente e pouco vivida, o seu aspecto revelador dos
traumas por que estava passando.
Praticamente
não falámos, olhei-a nos olhos inexpressivos demoradamente, acariciei-a na face
e passados poucos minutos despedi-me com um beijo na testa.
Chamou-me de anjo,
seguindo-me com
o olhar enquanto me afastava…
Nunca mais a vi nem soube quem era mas, com certeza, seria mais uma Évita que num dos seus desabafos dizia que até as putas do Moulin Rouge (Bar da cidade da Beira) eram tristes, como se as putas do Moulin Rouge, ou de qualquer outro lado, tivessem alguma razão para deixarem de ser tristes.
Nunca mais a vi nem soube quem era mas, com certeza, seria mais uma Évita que num dos seus desabafos dizia que até as putas do Moulin Rouge (Bar da cidade da Beira) eram tristes, como se as putas do Moulin Rouge, ou de qualquer outro lado, tivessem alguma razão para deixarem de ser tristes.
Um dia, uma delas, dirigiu-se ao meu local de trabalho e
disse à funcionária que a atendeu ao balcão que queria falar com o senhor
Delegado.
A funcionária foi ter
comigo ao gabinete e entre sorrisos e olhares cúmplices e conspirativos,
disse-me que estava ali uma pessoa que trabalhava no Moulin Rouge e que queria
falar comigo.
Não gosto de falsos pudores e pretensos moralismos. A maioria
das senhoras que ali trabalhavam já tinha enganado os maridos ou sido por eles
enganadas, e por isso, nenhuma estaria em condições de atirar a primeira pedra
mas, quando na presença de uma mulher que era assumidamente prostituta, não
queriam perder a oportunidade de parecerem as mulheres mais sérias deste mundo.
As prostitutas “casaram” com todos os homens que lhes pagam
para fazer sexo. Não será uma relação abençoada mas não é furtiva, não estão a
quebrar nenhum contrato, não estão a ser desonestas nem a enganarem seja quem
for.
Pedi-lhe
que a acompanhasse até junto de mim, e na presença da funcionária pedi-lhe para
se sentar. Era uma mulher quarentona, de formas cheias, muito pintada, cabelo
de um louro artificial e com um vestido cingido ao corpo, fazendo por parecer
exactamente aqui lo que era e que eu
fiz totalmente por ignorar.
Fosse ela a esposa do mais proeminente
empresário da cidade da Beira e eu não a teria tratado de forma mais
respeitosa.
Afinal,
estava ali na sua qualidade de mãe. Tinha um filho a estudar num colégio
interno em Portugal, quem sabe se seria no Colégio Nuno Álvares onde eu, uns qui nze
anos antes, também tinha estudado.
Precisava
de uma Autorização de Transferência de dinheiro para pagar as despesas do colégio.
Passados
uns dias, telefonou-me para me agradecer, sensibilizada e reconhecida não só
pela forma como a tinha tratado como também pela Autorização de Transferência
que lhe tinha concedido e à qual tinha direito.
Depois,
ofereceu-se para me pagar da única maneira que sabia. Agradeci-lhe e pedi para
deixarmos as coisas assim. Respondeu-me que devia ter logo percebido que eu era
diferente.
Quando
acabei de ver o filme senti desejos de telefonar à Lídia Jorge e à Margarida
Cardoso e agradecer a ambas “A COSTA DOS MURMÚRIOS”, autêntico soco no estômago
das minhas memórias.
Adormeci tarde com recurso a um comprimido e nunca tive tanto
a sensação de que a minha vida já era passado. O mundo é por vezes um lugar
esqui sito para se viver.
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