sábado, junho 21, 2014

A COSTA DOS

 MURMÚRIOS










Não sei se conhecem o romance de Lídia Jorge “A Costa dos Murmúrios” ou viram o filme com o mesmo título que há anos passou na televisão, muito bem realizado por Margarida Cardoso.

Esta obra conta a história, complexa do ponto de vista humano, social, político e militar que se passou em Moçambique, na cidade da Beira, nos anos que antecederam o fim do regime anterior.

A própria cidade da Beira serviu de cenário às filmagens e a interpretação, especialmente da personagem feminina mais importante, Évita, que na história foi para Moçambique para casar com o Alferes Silva, é tão convincente e real que bem poderia ter sido um simples documentário arrancado aos eventos daquela época e naquele sítio.

Eu vivia lá, naquela cidade, pelas alturas em que a história tem lugar. Anos antes tinha feito a guerra de Angola pelo que conhecia, por experiência própria, as contradições de uma guerra que se queria que fosse patriótica e que redundou num tremendo equívoco que abalou as consciências de muitos que nela participaram.

As guerras não se desejam mas se têm que acontecer que sejam por causas nobres. Se tem que se lutar e morrer numa guerra, que seja pela liberdade, pela justiça  e aqui residiu o grande equívoco da guerra colonial que travámos.

Quem lutava pela liberdade era o nosso inimigo, aqueles que combatíamos. Nós estávamos, simplesmente, do lado errado…

Foi a guerra das mentiras para a qual os jovens portugueses foram arrastados durante treze anos. Treze anos durante os quais os nossos políticos e generais nos ocultaram a verdade ou mentiram deliberadamente como o fez esse senhor general Kaúlza de Arriaga que, nos anos 70, concebeu e executou no Norte de Moçambique uma pomposa operação militar denominada Nó Górdio que envolveu milhares de soldados e se saldou pelo mais completo e rotundo fracasso militar.

Não tendo conseguido o factor surpresa, base do sucesso de todas as operações militares deste género, limitou-se a encontrar os velhos, mulheres e crianças do costume que constituíam, quase sempre, os nossos grandes troféus de guerra.

O espavento de que a operação se rodeou estava, de resto, de acordo com a vaidade do general e funcionou como trombetas de aviso para todos os guerrilheiros daquela região se afastarem por uns dias e deixarem passar as tropas do grande estratega...

Não obstante, chegado a Lisboa, deu uma conferência de imprensa, como agora se diz mas sem direito a perguntas... e em horário nobre, pela televisão, disse aos portugueses, com o mapa de Moçambique à frente (recordo-me perfeitamente) para emprestar maior veracidade às mentiras, e explicou como tinha conseguido derrotar o inimigo, expulsá-lo para fora das nossas fronteiras e praticamente ter acabado com a guerra... que seria vencida por Samora Machel uns tempos depois quando cercou a cidade da Beira excepção feita ao ar e à agua.

Mas estas mentiras não podiam ser contadas aos militares que faziam as operações no terreno entre eles o Alferes Silva e o capitão Forza Leal da história do nosso filme.

As suas personalidades perturbadas que procuravam um rumo, uma orientação para as suas vidas e que poderiam ter sido resgatadas numa guerra em que se lutasse e morresse por valores e ideais verdadeiramente patrióticos, acabaram por se afundar numa pseudo guerra de mentiras, vaidades e cobardias que sacrificaram aqueles que a tiveram de fazer.

O Alferes da nossa história da Costa dos Murmúrios suicidou-se e o capitão, que se achava a si próprio um “duro” combatente, sai de cena depois de queimar no quintal da sua casa, receoso e envergonhado, as fotografias e os relatórios das acções militares em que tinha participado e que o poderiam vir a comprometer servindo de matéria acusatória num eventual Tribunal de Crimes de Guerra.

Évita, sofre com a revelação do verdadeiro homem com quem tinha casado. Afinal, não era o jovem matemático que até tinha descoberto uma nova fórmula, mas apenas um homem sem carácter que seguia disciplinado e obedientemente o “duro” do seu capitão e escrevia letras pífias para o hino da Companhia enquanto dava tiros nos cus das galinhas.

Só num meio completamente estranho, onde quase toda a gente se confrontava com dramas na sua vida, Évita bem poderia ter sido aquela mulher que sem nunca me ter visto passou a telefonar-me para o Serviço para conversar. De auscultador entalado entre o ombro e a cabeça, enquanto assinava incontáveis papéis ia ouvindo e falando.

Ela admirava-se da paciência que eu tinha por ficar conversando com ela, assim, durante tanto tempo e eu respondia-lhe que era fácil quando se gostava das pessoas.

 - De todas as pessoas? -  perguntava ela admirada -  e porque não, respondia-lhe, não têm todas, tal como eu, nariz, dois olhos, boca e orelhas?

Um dia telefonou-me, estava no hospital, tinha tentado pôr termo à vida.

Parei o que estava a fazer e fui visitá-la. Vi-a então pela primeira vez. Estava acamada, era uma jovem inexperiente e pouco vivida, o seu aspecto revelador dos traumas por que estava passando.

Praticamente não falámos, olhei-a nos olhos inexpressivos demoradamente, acariciei-a na face e passados poucos minutos despedi-me com um beijo na testa.

Chamou-me de anjo, seguindo-me com o olhar enquanto me afastava…

Nunca mais a vi nem soube quem era mas, com certeza, seria mais uma Évita que num dos seus desabafos dizia que até as putas do Moulin Rouge (Bar da cidade da Beira) eram tristes, como se as putas do Moulin Rouge, ou de qualquer outro lado, tivessem alguma razão para deixarem de ser tristes.

Um dia, uma delas, dirigiu-se ao meu local de trabalho e disse à funcionária que a atendeu ao balcão que queria falar com o senhor Delegado.

 A funcionária foi ter comigo ao gabinete e entre sorrisos e olhares cúmplices e conspirativos, disse-me que estava ali uma pessoa que trabalhava no Moulin Rouge e que queria falar comigo.

Não gosto de falsos pudores e pretensos moralismos. A maioria das senhoras que ali trabalhavam já tinha enganado os maridos ou sido por eles enganadas, e por isso, nenhuma estaria em condições de atirar a primeira pedra mas, quando na presença de uma mulher que era assumidamente prostituta, não queriam perder a oportunidade de parecerem as mulheres mais sérias deste mundo.

As prostitutas “casaram” com todos os homens que lhes pagam para fazer sexo. Não será uma relação abençoada mas não é furtiva, não estão a quebrar nenhum contrato, não estão a ser desonestas nem a enganarem seja quem for.

Pedi-lhe que a acompanhasse até junto de mim, e na presença da funcionária pedi-lhe para se sentar. Era uma mulher quarentona, de formas cheias, muito pintada, cabelo de um louro artificial e com um vestido cingido ao corpo, fazendo por parecer exactamente aquilo que era e que eu fiz totalmente por ignorar.

 Fosse ela a esposa do mais proeminente empresário da cidade da Beira e eu não a teria tratado de forma mais respeitosa.

Afinal, estava ali na sua qualidade de mãe. Tinha um filho a estudar num colégio interno em Portugal, quem sabe se seria no Colégio Nuno Álvares onde eu, uns quinze anos antes, também tinha estudado.

Precisava de uma Autorização de Transferência de dinheiro para pagar as despesas do colégio.

Passados uns dias, telefonou-me para me agradecer, sensibilizada e reconhecida não só pela forma como a tinha tratado como também pela Autorização de Transferência que lhe tinha concedido e à qual tinha direito.

Depois, ofereceu-se para me pagar da única maneira que sabia. Agradeci-lhe e pedi para deixarmos as coisas assim. Respondeu-me que devia ter logo percebido que eu era diferente.

Quando acabei de ver o filme senti desejos de telefonar à Lídia Jorge e à Margarida Cardoso e agradecer a ambas “A COSTA DOS MURMÚRIOS”, autêntico soco no estômago das minhas memórias.

Adormeci tarde com recurso a um comprimido e nunca tive tanto a sensação de que a minha vida já era passado. O mundo é por vezes um lugar esquisito para se viver.

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