sexta-feira, junho 20, 2014

O comandante estava apaixonado
OS VELHOS
 MARINHEIROS
(Jorge Amado)

Episódio Nº 111












Aliás, médico e pianista de bordo... Veja o nosso doutor: se não fosse o enfermeiro, ele seria incapaz de receitar até uma lavagem.

- É, você tem razão. Com esse comandante, acabou-se de esculhambar a merda deste navio. Assim, nem o Lloyd...

- Mas que o comandante é digno como o diabo, lá isso você não pode negar ... De comenda no peito, não larga a luneta... Você é um mal-humorado, meu velho. Faça como eu: divirta-se. Estou me divertindo à beca e pretendo me divertir muito mais... - riu a gozar por antecipação.

- O que é que você está tramando?

- Vá tratar de sua vida, deixe o resto comigo. E arranje o afinador, o melhor de Natal.

Resultava aquele diálogo, na ponte de comando, da severa admoestação do comandante ao comissário, a propósito do piano. Pois não lhe ordenara, quando atracava o barco em Recife, fazer vir um afinador capaz de pôr o piano de bordo em condições?

Descera para terra confiante, esperando que suas ordens fossem cumpridas. E, no entanto, a senhorita Clotilde, uma pianista de mão-cheia, professora diplomada, batuta em Chopin e em áreas de óperas, em peças difíceis, dissera-lhe estar o piano no mesmo, uma lata velha.

Para batucar uns sambas, musiquinhas tolas de dança, vá lá. Os jovens não estavam ligando para a desafinação, queriam apenas deslizar no salão, arrastar os pés, agarrados. Mas, e os verdadeiros pianistas, como dona Clotilde? Não têm direitos, não lhes garante a Costeira o uso do piano?

- Essa velhota encruada, Comandante, está muito exigente. Pois se na viagem passada embarcou um pianista de São Paulo e o homem até deu um concerto a bordo. E não se queixou do piano...
O comandante explodiu, indignado:

- Faça-me o favor, senhor comissário, de tratar os passageiros com respeito. Não use expressões grosseiras. Quanto a esse tal pianista de São Paulo, devia ser um mordedor qualquer... E em Natal procure um afinador. Sem falta.

Velhota encruada... Falta de respeito, grosseirão... Menina não era, com certeza, mas tampouco era velha, confessara-lhe trinta e sete anos, alguns menos do que lhe dava o comandante.

Calculara por volta dos quarenta e cinco, uma diferença de quinze anos entre os dois, pois ele já festejara os sessenta, não era tão grande diferença assim.

Quando ela, numa conversa, falou de passagem em suas trinta e sete primaveras, ele foi obrigado a rejuvenescer-se, baixando à casa dos cinquenta e cinco. Mas eram detalhes sem importância, cinco ou sete anos a mais ou a menos nada significavam.

 Importante, pensava, era o encontro de duas solidões, de duas ânsias de compreensão e carinho, de duas almas gémeas dispostas a darem-se as mãos e marcharem juntas, cicatrizadas as feridas do passado, numa permanente festa de amor.

 O comandante estava apaixonado e sua condição de namorado tornava-o forte e disposto, não ia admitir relaxamento na execução de suas ordens.

A viagem transcorrida sem incidentes, a não ser uma violenta discussão sobre política, na véspera da chegada a Natal, envolvendo passageiros e oficiais de bordo.

Iniciara-se durante o jantar, na mesa presidida pelo segundo-piloto. Adeptos da Aliança Liberal de um lado, governistas do outro, a exaltarem as qualidades e vantagens de Getúlio Vargas e Júlio Prestes, suas possibilidades nas eleições e nas armas.

O segundo-piloto revelava-se um getulista de quatro costados, era gaúcho, jurava por Flores da Cunha, falava em tropas riograndenses-do-sul entrando no Rio de Janeiro a cavalo, espada na mão - pois a espada é a arma clássica do homem dos pampas - , a decepar cabeças desses políticos ladravazes e podres.

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