O comandante estava apaixonado |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 111
Aliás, médico e pianista de bordo... Veja o nosso doutor: se não fosse o enfermeiro, ele seria incapaz de receitar até uma lavagem.
- É, você tem razão. Com esse
comandante, acabou-se de esculhambar a merda deste navio. Assim, nem o Lloyd...
- Mas que o comandante é digno como o
diabo, lá isso você não pode negar ... De comenda no peito, não larga a luneta...
Você é um mal-humorado, meu velho. Faça como eu: divirta-se. Estou me
divertindo à beca e pretendo me divertir muito mais... - riu a gozar por
antecipação.
- O que é que você está tramando?
- Vá tratar de sua vida, deixe o resto
comigo. E arranje o afinador, o melhor de Natal.
Resultava aquele diálogo, na ponte de
comando, da severa admoestação do comandante ao comissário, a propósito do
piano. Pois não lhe ordenara, quando atracava o barco em Recife, fazer vir um
afinador capaz de pôr o piano de bordo em condições?
Descera para terra confiante, esperando
que suas ordens fossem cumpridas. E, no entanto, a senhorita Clotilde, uma
pianista de mão-cheia, professora diplomada, batuta em Chopin e em áreas de
óperas, em peças difíceis, dissera-lhe estar o piano no mesmo, uma lata velha.
Para batucar uns sambas, musiqui nhas tolas de dança, vá lá. Os jovens não estavam
ligando para a desafinação, queriam apenas deslizar no salão, arrastar os pés,
agarrados. Mas, e os verdadeiros pianistas, como dona Clotilde? Não têm
direitos, não lhes garante a Costeira o uso do piano?
- Essa velhota encruada, Comandante,
está muito exigente. Pois se na viagem passada embarcou um pianista de São
Paulo e o homem até deu um concerto a bordo. E não se queixou do piano...
O comandante explodiu, indignado:
- Faça-me o favor, senhor comissário, de
tratar os passageiros com respeito. Não use expressões grosseiras. Quanto a
esse tal pianista de São Paulo, devia ser um mordedor qualquer... E em Natal
procure um afinador. Sem falta.
Velhota encruada... Falta de respeito,
grosseirão... Menina não era, com certeza, mas tampouco era velha,
confessara-lhe trinta e sete anos, alguns menos do que lhe dava o comandante.
Calculara por volta dos quarenta e cinco, uma
diferença de qui nze anos entre os
dois, pois ele já festejara os sessenta, não era tão grande diferença assim.
Quando ela, numa conversa, falou de
passagem em suas trinta e sete primaveras, ele foi obrigado a rejuvenescer-se,
baixando à casa dos cinquenta e cinco. Mas eram detalhes sem importância, cinco
ou sete anos a mais ou a menos nada significavam.
Importante, pensava, era o encontro de duas
solidões, de duas ânsias de compreensão e carinho, de duas almas gémeas
dispostas a darem-se as mãos e marcharem juntas, cicatrizadas as feridas do
passado, numa permanente festa de amor.
O
comandante estava apaixonado e sua condição de namorado tornava-o forte e
disposto, não ia admitir relaxamento na execução de suas ordens.
A viagem transcorrida sem incidentes, a
não ser uma violenta discussão sobre política, na véspera da chegada a Natal,
envolvendo passageiros e oficiais de bordo.
Iniciara-se durante o jantar, na mesa
presidida pelo segundo-piloto. Adeptos da Aliança Liberal de um lado,
governistas do outro, a exaltarem as qualidades e vantagens de Getúlio Vargas e
Júlio Prestes, suas possibilidades nas eleições e nas armas.
O segundo-piloto revelava-se um
getulista de quatro costados, era gaúcho, jurava por Flores da Cunha, falava em
tropas riograndenses-do-sul entrando no Rio de Janeiro a cavalo, espada na mão
- pois a espada é a arma clássica do homem dos pampas - , a decepar cabeças
desses políticos ladravazes e podres.
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