sexta-feira, janeiro 23, 2015

A Bíblia
CONVERSA

DE SURDOS

















Em Outubro de 2009, o padre e teólogo Carreira das Neves e José Saramago travaram na televisão uma conversa de surdos ou, no mínimo, um diálogo difícil.

Esta dificuldade traduziu-se numa impossibilidade de entendimento, espécie de caminho que não leva a lado nenhum e que sempre acontecerá quando um crente e um não crente se procuram explicar reciprocamente.

José Saramago fez acusações graves à Bíblia e a Deus, tendo mesmo reconhecido ter exagerado quando utilizou certas expressões, por exemplo: o tal “Manual de Maus Costumes”, mas desculpou-se com os seus direitos de autor.

O reconhecimento deste exagero parece-me ter sido feito mais por uma questão de amabilidade para com o interlocutor e as pessoas religiosas que o estavam a ouvir do que por não pensar exactamente o que disse.

Ele leu o que estava escrito no Antigo Testamento e a conclusão a que chegou foi de que aquilo não passava de um manual de maus costumes e por isso o disse e reafirmará todas as vezes que lhe vier a propósito e justificará apoiando-se em muitas passagens da Bíblia.

A grande questão que se levanta nestas apreciações tão graves sobre a Bíblia, é que este livro, para judeus e cristãos, é um texto sagrado porque eles acreditam no Deus daquela religião enquanto que, para José Saramago e para todos os ateus, é simplesmente um livro, não propriamente igual a qualquer outro, mas sem a componente do sagrado.

Por esta razão, a discussão que ambos travaram, não era de carácter literário ou interpretativo, qualquer coisa de académico que acontece com todas os livros, mas antes algo que tocava fundo, na essência espiritual de cada um deles e na de todas as pessoas que professam aquelas religiões mas que incomodam também os outros, os não crentes, porque afinal todos fomos criados neste “caldo” religioso e sabemos que a sociedade é constituída maioritariamente por pessoas religiosas ou que se consideram como tal, incluindo nela os nossos amigos e familiares.

As pessoas, não se sabe quem, que ao longo de mil anos foram escrevendo o que está escrito na Bíblia, (não vamos pensar que tenha sido Deus a fazê-lo directamente), tinham a noção de que o estavam a fazer para um livro sagrado e que essas palavras iriam ser lidas como se tivessem sido ditadas por Deus, muitas delas, mesmo, diálogos onde intervém o próprio Deus como personagem.

Isto significava que aquela mensagem escrita não iria apenas influenciar os leitores mas formar consciências, mentalidades, transmitir orientações com a força de ordens, criar unidade de um povo à volta de um Deus, essa entidade suprema, transcendente, que se escapa ao entendimento porque ultrapassava os homens em absoluto, no poder, deixando-lhes apenas a escapatória da obediência cega, sem discussão.

Terrível, a responsabilidade desses homens que ao longo dos séculos foram escrevendo a Bíblia, de tal forma que tiveram de a repartir com os teólogos, os que interpretam essa escrita.

Por aquilo que foi dito pelo teólogo Carreira das Neves, o Antigo Testamento é, todo ele, escrito usando metáforas e parábolas, de uma forma simbólica, o que significa uma solução de grande inteligência porque permite que os teólogos o actualizem e expliquem aos crentes de acordo com os tempos que se estão vivendo e com as orientações que em cada momento a Igreja ache mais conveniente.

Por esta razão, a Bíblia será cada vez mais um texto metafórico, para interpretar e não para ler porque o seu significado literal, com o avanço dos conhecimentos científicos e o triunfo da razão, será cada vez menos compreensivo.

Assim, a importância e o papel dos teólogos é cada vez mais importante para a Igreja porque ela pretende – pretensão inglória - complementar a fé dos seus seguidores com explicações plausíveis e racionais da mensagem do seu Deus.

Contra isto se insurgiu José Saramago para quem o livro não tem nada de sagrado e pergunta: “mas com que direito os senhores me vêm dizer o que está escrito na Bíblia?”

E aqui está a polémica que, ao fim e ao cabo, não é polémica nenhuma:

- O padre Carreira das Neves lê a Bíblia com os olhos de um crente, nem preciso acrescentar de padre e teólogo.

- José Saramago faz a mesma leitura com os olhos de um não crente mesmo que, como afirmou, se esforçasse para o ser.

O ponto de partida está na crença de um Deus que em seis dias, ou lá o tempo que fosse, fez o Universo. Antes não fez nada e depois, daí para cá, nada voltou a fazer, versão da Bíblia que, para Saramago, não crente, é absurdo e inteligível.

Realmente, a razão e a fé são inconciliáveis. A razão é um instrumento de análise crítica e a fé um dogma ou um conjunto de dogmas que não se sujeitam a essa tal análise crítica e constitui “batotice” Carreira das Neves afirmar que, “se os crentes não conseguem provar que Deus existe, os ateus também não conseguem provar que ele não existe”.

Todos sabemos que o ónus da prova é de quem afirma. Não é legítimo pensar que recai sobre mim a obrigação de provar em tribunal que não sou criminoso.

Fiquemo-nos, portanto, pela questão da fé. Foi através do processo de selecção natural que a sobrevivência da espécie humana aconteceu e o acreditar fez parte desse processo.

Os que não acreditavam e não seguiam os conselhos dos progenitores foram ficando pelo caminho…e mesmo assim não foi fácil... momentos houve em que chegámos a números no limiar mínimo da sobrevivência da espécie.

Este “jeito” de acreditar ficou-nos gravado no cérebro, é verdade, mas não nos esqueçamos que se chegámos ao que somos hoje devemo-lo à capacidade de usar a nossa razão sem a qual também não teríamos sobrevivido.

Temos de conviver todos, crentes e não crentes, apelando cada vez mais à nossa inteligência, razão e senso comum… seja ele o lado em que estivermos.

O nosso futuro colectivo não depende de mais ninguém para além de nós próprios. Não sejamos ingénuos, não confiemos essa matéria a Deus. O mesmo “mecanismo de acreditar” que pode ter sido o segredo da nossa sobrevivência em tempos recuados da nossa evolução, pode, agora, virar-se contra nós.


Pensemos no estão fazendo os fundamentalistas e radicais islâmicos e os de todas as religiões.

Tempos perigosos os que vivemos...

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