A Bíblia |
CONVERSA
DE SURDOS
Em Outubro de 2009,
o padre e teólogo Carreira das Neves e José Saramago travaram na televisão uma
conversa de surdos ou, no mínimo, um diálogo difícil.
Esta dificuldade traduziu-se numa
impossibilidade de entendimento, espécie de caminho que não leva a lado nenhum
e que sempre acontecerá quando um crente e um não crente se procuram explicar
reciprocamente.
José Saramago fez acusações graves à
Bíblia e a Deus, tendo mesmo reconhecido ter exagerado quando utilizou certas
expressões, por exemplo: o tal “Manual de Maus Costumes”, mas desculpou-se com
os seus direitos de autor.
O reconhecimento deste exagero
parece-me ter sido feito mais por uma questão de amabilidade para com o
interlocutor e as pessoas religiosas que o estavam a ouvir do que por não
pensar exactamente o que disse.
Ele leu o que estava escrito no
Antigo Testamento e a conclusão a que chegou foi de que aqui lo
não passava de um manual de maus costumes e por isso o disse e reafirmará todas
as vezes que lhe vier a propósito e justificará apoiando-se em muitas passagens
da Bíblia.
A grande questão que se levanta
nestas apreciações tão graves sobre a Bíblia, é que este livro, para judeus e
cristãos, é um texto sagrado porque eles acreditam no Deus daquela religião
enquanto que, para José Saramago e para todos os ateus, é simplesmente um
livro, não propriamente igual a qualquer outro, mas sem a componente do
sagrado.
Por esta razão, a discussão que ambos
travaram, não era de carácter literário ou interpretativo, qualquer coisa de
académico que acontece com todas os livros, mas antes algo que tocava fundo, na
essência espiritual de cada um deles e na de todas as pessoas que professam
aquelas religiões mas que incomodam também os outros, os não crentes, porque
afinal todos fomos criados neste “caldo” religioso e sabemos que a sociedade é
constituída maioritariamente por pessoas religiosas ou que se consideram como
tal, incluindo nela os nossos amigos e familiares.
As pessoas, não se sabe quem, que ao
longo de mil anos foram escrevendo o que está escrito na Bíblia, (não vamos
pensar que tenha sido Deus a fazê-lo directamente), tinham a noção de que o
estavam a fazer para um livro sagrado e que essas palavras iriam ser lidas como
se tivessem sido ditadas por Deus, muitas delas, mesmo, diálogos onde intervém
o próprio Deus como personagem.
Isto significava que aquela mensagem
escrita não iria apenas influenciar os leitores mas formar consciências,
mentalidades, transmitir orientações com a força de ordens, criar unidade de um
povo à volta de um Deus, essa entidade suprema, transcendente, que se escapa ao
entendimento porque ultrapassava os homens em absoluto, no poder, deixando-lhes
apenas a escapatória da obediência cega, sem discussão.
Terrível, a responsabilidade desses
homens que ao longo dos séculos foram escrevendo a Bíblia, de tal forma que
tiveram de a repartir com os teólogos, os que interpretam essa escrita.
Por aqui lo
que foi dito pelo teólogo Carreira das Neves, o Antigo Testamento é, todo ele,
escrito usando metáforas e parábolas, de uma forma simbólica, o que significa
uma solução de grande inteligência porque permite que os teólogos o actualizem
e expliquem aos crentes de acordo com os tempos que se estão vivendo e com as
orientações que em cada momento a Igreja ache mais conveniente.
Por esta razão, a Bíblia será cada
vez mais um texto metafórico, para interpretar e não para ler porque o seu
significado literal, com o avanço dos conhecimentos científicos e o triunfo da
razão, será cada vez menos compreensivo.
Assim, a importância e o papel dos
teólogos é cada vez mais importante para a Igreja porque ela pretende – pretensão inglória - complementar a fé dos seus seguidores com explicações plausíveis e
racionais da mensagem do seu Deus.
Contra isto se insurgiu José Saramago
para quem o livro não tem nada de sagrado e pergunta: “mas com que direito os
senhores me vêm dizer o que está escrito na Bíblia?”
E aqui
está a polémica que, ao fim e ao cabo, não é polémica nenhuma:
- O padre Carreira das Neves lê a
Bíblia com os olhos de um crente, nem preciso acrescentar de padre e teólogo.
- José Saramago faz a mesma leitura
com os olhos de um não crente mesmo que, como afirmou, se esforçasse para o
ser.
O ponto de partida está na crença de
um Deus que em seis dias, ou lá o tempo que fosse, fez o Universo. Antes não
fez nada e depois, daí para cá, nada voltou a fazer, versão da Bíblia que, para
Saramago, não crente, é absurdo e inteligível.
Realmente, a razão e a fé são
inconciliáveis. A razão é um instrumento de análise crítica e a fé um dogma ou
um conjunto de dogmas que não se sujeitam a essa tal análise crítica e
constitui “batotice” Carreira das Neves afirmar que, “se os crentes não
conseguem provar que Deus existe, os ateus também não conseguem provar que ele
não existe”.
Todos sabemos que o ónus da prova é
de quem afirma. Não é legítimo pensar que recai sobre mim a obrigação de provar
em tribunal que não sou criminoso.
Fiquemo-nos, portanto, pela questão
da fé. Foi através do processo de selecção natural que a sobrevivência da espécie humana aconteceu e o acreditar fez parte desse processo.
Os que não acreditavam e não seguiam
os conselhos dos progenitores foram ficando pelo caminho…e mesmo assim não foi
fácil... momentos houve em que chegámos a números no limiar mínimo da
sobrevivência da espécie.
Este “jeito” de acreditar ficou-nos
gravado no cérebro, é verdade, mas não nos esqueçamos que se chegámos ao que
somos hoje devemo-lo à capacidade de usar a nossa razão sem a qual também não
teríamos sobrevivido.
Temos de conviver todos, crentes e
não crentes, apelando cada vez mais à nossa inteligência, razão e senso comum…
seja ele o lado em que estivermos.
O nosso futuro colectivo não depende de mais ninguém para além de nós próprios. Não sejamos ingénuos,
não confiemos essa matéria a Deus. O mesmo “mecanismo de acreditar” que pode
ter sido o segredo da nossa sobrevivência em tempos recuados da nossa evolução,
pode, agora, virar-se contra nós.
Pensemos no estão fazendo os fundamentalistas e radicais islâmicos
e os de todas as religiões.
Tempos perigosos os que vivemos...
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