Necessitava-se de outra valentia |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 274
12
Os acontecimentos, os grandes e os
pequenos, estes não menos importantes, ocorreram, vários ao mesmo tempo, com a mesma
incrível rapidez com que as águas se alastraram e se elevaram, cobrindo por
inteiro o vale e o sopé das colinas.
Um mar, mal comparado - disse o velho
Gerino que nunca vira o mar mas o sabia desmedido.
Ao abandonar as moradias sob o impacto
do estrondo do rio a se rasgar, os habitantes deram-se conta de que estavam com
água no meio das canelas mas nem tiveram tempo para se admirar pois a água
continuou a subir coxas acima, ultrapassou as barrigas, chegou ao peito dos
mais altos, ao pescoço dos mais baixos.
O nível mais elevado mediu-se pela manhã
numa claridade difusa como se a noite tentasse prosseguir: a cheia batia no
queixo de Fadul. O povo subira pelos morros, espremia-se nos degraus da ladeira
empedrada que levava à casa do Capitão.
Noite de pesadelo, houve um começo de
pânico, por pouco não se generaliza. Contido a duras penas, foi possível
ordenar providências enquanto a enchente ainda não ultrapassara a altura média
dos adultos.
Desarvoradas baratas tontas, as
raparigas iam da oficina ao armazém, recorriam aos gritos a Castor e a Fadul, de
algumas mais desvairadas partiu a histeria e o anúncio do fim do mundo.
O resto do povo atirara-se para o
descampado ao ver, com os olhos que a terra haveria de comer, o casario do
Caminho dos Burros reduzir-se a menos de metade em questão de minutos.
As choupanas e os barracos desabavam na
torrente, iguais a frutos apodrecidos caindo das árvores. Malocas levantadas às
pressas, provisórios abrigos de viventes que tendo chegado sem intenção de
permanência, pensando demorar-se o período de uma empreitada, botaram raízes e
ali se fixaram.
De pé resistiram as construções mais
sólidas, de tijolo e pedra e cal; ocupadas pelas águas que entravam e saíam por
portas e janelas, os moradores expulsos.
Pouco afeitos ao medo, valentes e
fanfarrões, habituados a conviver com jaguatiricas ferozes e serpentes
venenosas, a desafiar a morte nos caminhos de tocaias, jagunços e clavinoteiros,
viam-se de súbito ameaçados por forças superiores - as águas em revolta
derrubando casas, tragando animais, o vendaval arrancando árvores,
levantando-as no ar não sabiam como enfrentá-las, sentiam-se desarmados,
impotentes.
Às armas de fogo - revólveres, repetições,
bacamartes - as armas brancas - punhais,
facas de ponta- não resolviam, necessitava-se de outra valentia.
Atónitos, hesitantes, acuados, cercavam
Fadul sem saber o que fazer. Não faltava o que fazer se qui sessem
enfrentar a situação e limitar as consequências: bastava olhar em derredor,
acompanhando o gesto imperativo do turco, os braços estendidos.
Fadul não titubeou: acabara de dizer a Deus
as últimas verdades, estava pronto para o que desse e viesse.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home