quarta-feira, junho 24, 2015

Necessitava-se de outra valentia
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 274
















12


Os acontecimentos, os grandes e os pequenos, estes não menos importantes, ocorreram, vários ao mesmo tempo, com a mesma incrível rapidez com que as águas se alastraram e se elevaram, cobrindo por inteiro o vale e o sopé das colinas.

Um mar, mal comparado - disse o velho Gerino que nunca vira o mar mas o sabia desmedido.

Ao abandonar as moradias sob o impacto do estrondo do rio a se rasgar, os habitantes deram-se conta de que estavam com água no meio das canelas mas nem tiveram tempo para se admirar pois a água continuou a subir coxas acima, ultrapassou as barrigas, chegou ao peito dos mais altos, ao pescoço dos mais baixos.

O nível mais elevado mediu-se pela manhã numa claridade difusa como se a noite tentasse prosseguir: a cheia batia no queixo de Fadul. O povo subira pelos morros, espremia-se nos degraus da ladeira empedrada que levava à casa do Capitão.

Noite de pesadelo, houve um começo de pânico, por pouco não se generaliza. Contido a duras penas, foi possível ordenar providências enquanto a enchente ainda não ultrapassara a altura média dos adultos.

Desarvoradas baratas tontas, as raparigas iam da oficina ao armazém, recorriam aos gritos a Castor e a Fadul, de algumas mais desvairadas partiu a histeria e o anúncio do fim do mundo.

O resto do povo atirara-se para o descampado ao ver, com os olhos que a terra haveria de comer, o casario do Caminho dos Burros reduzir-se a menos de metade em questão de minutos.
As choupanas e os barracos desabavam na torrente, iguais a frutos apodrecidos caindo das árvores. Malocas levantadas às pressas, provisórios abrigos de viventes que tendo chegado sem intenção de permanência, pensando demorar-se o período de uma empreitada, botaram raízes e ali se fixaram.

De pé resistiram as construções mais sólidas, de tijolo e pedra e cal; ocupadas pelas águas que entravam e saíam por portas e janelas, os moradores expulsos.

Pouco afeitos ao medo, valentes e fanfarrões, habituados a conviver com jaguatiricas ferozes e serpentes venenosas, a desafiar a morte nos caminhos de tocaias, jagunços e clavinoteiros, viam-se de súbito ameaçados por forças superiores - as águas em revolta derrubando casas, tragando animais, o vendaval arrancando árvores, levantando-as no ar não sabiam como enfrentá-las, sentiam-se desarmados, impotentes.

Às armas de fogo - revólveres, repetições, bacamartes -  as armas brancas - punhais, facas de ponta- não resolviam, necessitava-se de outra valentia.

Atónitos, hesitantes, acuados, cercavam Fadul sem saber o que fazer. Não faltava o que fazer se quisessem enfrentar a situação e limitar as consequências: bastava olhar em derredor, acompanhando o gesto imperativo do turco, os braços estendidos.

Fadul não titubeou: acabara de dizer a Deus as últimas verdades, estava pronto para o que desse e viesse.

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