O rio então desceu das cabeceiras, rugindo |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº
270
7
A cabeça-d’água alimentada pelas chuvas
do dilúvio cresceu
nas nascentes do rio das Cobras, ergueu-se
altíssima montanha, e espoucou. O rio então desceu das cabeceiras, rugindo,
varrendo tudo o que encontrou em sua frente.
Opresso nos limites imemoriais das
margens, atrabiliário ele os rompeu e a enchente inundou Tocaia Grande. Foi um
horror, recordava o Turco Fadul.
Na mata invadida, os animais fugiam
apavorados, subindo
pelas árvores, enfiando-se terra
adentro, num êxodo onde se misturavam cobras e onças, passarinhos e macacos,
porcos-do-mato, tatus e capivaras, lerdas preguiças movendo-se de galho em
galho.
Os que não escaparam a tempo lutavam
impotentes contra a correnteza, logo os corpos foram muitos e diversos, boiando
à deriva, bichos selvagens e criações domésticas.
Com o estrondo, quem estava dormindo se
acordou, quem velava à espera do pior pôs-se de pé, saíram todos portas afora.
O rio arremetia insano, a massa de água
crescia a cada instante e se alastrava, destruindo o que encontrava pela
frente. Ao rio se juntou o vento, rodopiando furibundo, para terminarem de vez com
o arraial.
Vislumbravam-se vultos na escuridão,
alguns empunhando fifós que em seguida se apagavam, outros gritando recomendações,
pedidos de socorro, ordens, quem sabe o quê: o vendaval consumia as palavras e
a luz das candeias.
Não se ouvia nada além do ronco
apavorante da enxurrada e do bramido fúnebre do tufão.
Um homem passou correndo, era o carpina
Lupiscínio, foi-se postar junto ao pontilhão. Será que pensava sustentá-lo com
as mãos, defendê-lo com o corpo? Mulheres afluíam da Baixa dos Sapos,
desatinadas; chegava gente do Caminho dos Burros; reuniam-se no descampado em
pasmo e confusão, em alarido e choro.
Ninguém sabia para onde ir nem o que
fazer. Mais forte que o terror e o desespero, a voz tonitruante do árabe Fadul
Abdala cobriu o zunido do pé-de-vento e o motim das águas. Punhos erguidos,
desafiava os céus.
8
Primeira construção a ruir e a ser
tragada no caudal das águas, o velho palheiro, apodrecido pelo tempo, arrastou
em seus destroços a memória de alegrias e tristezas.
Quando havia dança no chão de barro
batido, sólido que nem cimento, o Turco Fadul, usando vocabulário de cabaré, denominava-o
pomposamente salão de baile. Mas servira com igual proveito de dormitório para tropeiros
e passantes que ali acendiam braseiros para chamuscar jabá e esquentar café.
Juntavam-se em roda dos baralhos, sala
de jogo, cassino de apostas, antro de trapaças e bafafás onde refulgia amiúde o
aço dos punhais.
Cenáculo de prosa e cantoria: casos embelecos,
abusões, modinhas, repenicar de violão e cavaqui nho,
sons de concertina.
Enfermaria de hospital, ali repousaram
doentes em trânsito para Itabuna em demanda de médico e farmácia.
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