sábado, outubro 31, 2015

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)


Episódio Nº 98



















Decidida, olhou para a fogueira e exigiu-lhe:

 - Quando o fogo me chegar, tereis de me salvar. Prometei-me!

O almocreve tinha uma dívida de gratidão antiga para com ela, e apesar de desconhecer o que a incomodava, concordou com um aceno de cabeça.

Então, a mulher lançou a mão na direcção do fogo, num gesto rápido, e uma enorme labareda cresceu. Depois atirou um pó para a fogueira, que se apagou em instantes.

Mem teve a certeza de que ela era uma bruxa embora parecesse aterrada com o futuro. Ouviu-a anunciar:

 - A partir de agora, terei de viver no escuro.

Sem nunca lhe dizer como se chamava, ou o que ele deveria fazer para a ajudar, a mulher afastou-se, contornando a torre tombada de Soure.

Mem não a voltou a ver até partir para Coimbra.


Foi isto que ele disse, anos depois, durante a minha investigação, quando me relatou o seu reencontro com a bruxa. E eu acredito nele. Apesar de tudo quanto aconteceu, acredito nele.


Viseu, Domingo de Páscoa de 1126


O prior Teotónio, atrás do altar, semicerrou os olhos. Estava num daqueles dias, como ele dizia, em que os dragões negros o visitavam e o deixavam furioso com o mundo.

Ao contrário dele, que reduzia ao mínimo as vestes, usando apenas uma alva branca e comprida, os nobres em Viseu, faziam da Páscoa, uma ocasião para se pavonearem.

Pregava constantemente que Jesus não era aquela explosão de colorida e brilhante de roupas e jóias, mas sim a pobreza e o arrependimento, o despojo pelos haveres, o recato simples de uma oração, o coração puro e vazio de instintos menores.

Mas o desejo de impressionar os seus semelhantes toldava os fiéis, e apresentavam-se na Igreja luzidios, com seus tecidos macios e os seus olhares invejosos, por descobrirem que alguém parecia melhor do que eles, uns bancos à frente.

Com tantos mendigos nas ruas de Viseu à fome...

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