segunda-feira, outubro 19, 2015

Meu amor - balbuciou botando sangue pela boca e pelo peito...
Tocaia Grande
(Jorge Amado)



Episódio Nº 366



















A calma da manhã ensolarada cobria Tocaia Grande, um manto de paz. Os ruídos eram os de sempre, a brisa arrepiava a água do rio, mulheres lavavam roupa cantando modas, porcos fuçavam frutos podres debaixo da jaqueira.

Fadul estava na porta do armazém, Durvalino tirava água do poço e se ouvia a pancada do malho sobre a bigorna na oficina de Castor Abduim.

Bernarda e Coroca se aproximavam para desejar boa viagem a Zilda e beijar Nado.

No cemitério, uma sepultura a mais, cova rasa igual às outras: a de Altamirando, pastor de cabras e de porcos. Tinham-no enterrado na vizinhança de Ção, adivinhando-lhe a vontade.

6

Nus, devido ao calor, naquele mesmo dia, na boca da noite, estavam o capitão Natário da Fonseca e Bernarda, sua afilhada, seu xodó, na cama a folgar, quando sentiram alguém abrir a tramela e empurrar a porta de entrada da casa de madeira.

Devia ser Coroca voltando do outro lado do rio onde fora de visita a sai Vanjé. Assim pensando, o Capitão quis prosseguir na folia, mas Bernarda duvidou e, num estremeção, saiu debaixo dele.

Andava num pé e noutro desde o dia dos fiscais matando porcos, um pressentimento na cabeça, um peso no coração.

Nas sombras do quarto incorporou-se um vulto, vinha gritando da sala:

- Chegou o dia de tu morrer, Natário da Fonseca, capitão de merda!

Visou o Capitão mas quem recebeu o tiro foi Bernarda, que
se erguera de súbito, tomando a frente do padrinho. A bala lhe rasgou o peito, atravessando o seio esquerdo, e ela caiu em cima de Natário.

No mesmo instante uma bala, disparada da porta, derrubou o capanga. O negro Espiridião fez-se ver ao lusco-fusco, mas não entrou no quarto, ficou esperando na saleta.

Bernarda morria nos braços do padrinho como lhe anunciara a cigana no distante dia em que lhe lera a mão.

-Meu amor... -  murmurou, botando sangue pelo peito e pela boca. Pela primeira vez ela lhe dizia meu amor, ao único amor de sua vida.

Ainda repetiu antes que a voz se extinguisse: - Meu amor..,.

O sangue de Bernarda cobriu o busto de Natário, escorrendo- lhe pela barriga e pelas coxas. Ele a levantou nos braços, deitou-a sobre a cama e a cobriu com o lençol.

O rosto imóvel, as mandíbulas duras, os dentes cerrados, os olhos baços, um fio de navalha, o Capitão demorou um minuto ali parado diante do corpo da afilhada. Dava pena e dava medo.

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