quinta-feira, outubro 29, 2015

Trocaram-se os primeiros tiros às 2 horas da tarde.
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 375























17



Por volta das onze horas da manhã, a lei se fez presente na pessoa acanhada e pacata de Irênio Gomes, meirinho da vara criminal no movimentado fórum de Itabuna.

Chegou a Tocaia Grande acompanhado por dois soldados da Policia Militar para assim afirmar ou alardear autoridade; impingi-la, se possível.

Os soldados armados até os dentes podres, Irênio exibindo no cinto uma pistola ferrugenta, obsoleta.

Sem descer da montaria, ladeado pelos dois recrutas, o oficial de justiça proclamou na praça pública, ou seja no descampado, diante do cruzeiro erigido para a Santa Missão, o édito ditado pelo Doutor Juiz de Direito, e por ele mandado publicar em "A Semana Grapiúna" e apregoar aos quatro ventos.

Ordenava que os cidadãos de Tocaia Grande depusessem as armas e as rendessem à supracitada autoridade, à qual devia entregar-se ao mesmo tempo, pondo-se à disposição da justiça, para responder a processo por crime de morte e comparecer a júri, o indigitado Natário da Fonseca, contra quem fora expedida ordem de prisão.

Tendo terminado o pregão solene, entre mofas e risadas dos assistentes, Irênio Gomes iniciou a retirada. E o fez em paz ou quase, pois o povo reunido para escutar apenas os desarmou, aos três basbaques.

Os cidadãos mais exaltados mandaram a lei à merda e o juiz à puta que o pariu.


18


Trocaram-se os primeiros tiros às duas horas da tarde, na casa de farinha, nos limites dos roçados de Zé dos Santos e da velha Vanjé, e os últimos depois da meia-noite, nos altos do Outeiro do Capitão: na subida de pedras amontoavam-se os cadáveres como se a guarnição da casa fosse composta por uma data de colhudos.

Valiam por um bando mas eram apenas dois, postados atrás do pé de mulungu, desabrochado em flor.

Cerco, ataque e ocupação duraram dez horas e vinte minutos, contados, segundo a segundo, no patacão de níquel do nervoso
sargento Orígenes.

Entre as três e as quatro horas, ou seja, entre o massacre dos sergipanos e a segunda investida, comandada pelo cabo Chico Roncolho, aconteceu uma trégua. Aproveitada pelos atacantes para completar o cerco e pelos moradores para sepultar seus mortos em covas abertas às pressas, as últimas individuais.

Depois já não houve tempo para enterrar ninguém e a fossa na qual, no dia seguinte, atiraram de roldão, indiscriminados, os corpos dos caídos, das duas facções, foi cavada pelos adventícios.

No recrutamento de jagunços, em Itabuna, os beleguins prometeram pândega descomunal, esbórnia sem comparação, butim ilimitado na grande festa comemorativa da vitória.

Na falta de putas, a função reduziu-se à comilança e à cachaçada, e de que vale comer e beber sem a animação das raparigas?

Somente elas são capazes de apaziguar o coração e remontar o ânimo sujeito às vicissitudes dos combates, o trio do medo apunhalando os quibas, afrouxando a rola.

Além disso, apenas o rico saque do armazém; nas residências particulares, bem pouca coisa de valor obtiveram.

Os que abandonaram Tocaia Grande antes e durante o ataque levaram consigo o máximo de pertences, autênticos burros de tropa, sobrecarregados.

Ainda bem que a máquina de costura de dona Natalina era de mão e não de pé, pois ela a conduziu sobre a cabeça.

Dona Valentina e Jucá Neves suaram e arrenegaram, transportando enormes trouxas nas quais salvavam roupas e objectos de cama e mesa da Pensão Central.

Não vale a pena perder tempo falando dos que, por covardia ou avarícia, abandonaram o arraial recusando-se a pegar em armas.

 Deve-se dizer contudo que nem o Capitão nem Fadul e Castor, seus lugar-tenentes, forçaram a decisão de quem quer que fosse. Nada mais arriscado do que comandar medrosos, quem melhor sabia era Natário.

Os que fugiram, salvaram a vida e alguns teréns, perderam tudo o mais, inclusive o respeito próprio e a consideração alheia, como se, ao desertar dos parentes e vizinhos, adquirissem, no semblante e na alma, as marcas da bexiga negra ou contraíssem lepra.

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