Linda, na sua nudez de mulher |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 17
OUTRA VEZ O CHATO, NA HORA DO DESCANSO
Um rápido parêntesis – não me demoro – para revelar factos condenáveis, iluminar com o facho da verdade detalhes obscuros, desmascarando, mais uma vez a senhorita Carmosina Sluizer da Consolação.
Não creiam que a pérsia, que não lhe tenho estima. Ao contrário, reconheço-lhe
qualidades e louvo os motivos capazes de a levar a violar a lei dos homens e a
lei de Deus, quando generosos ou nobres.
Quanto a persegui-la, quem ousaria em
Agreste? Nem o coronel Artur de Tapitanga, nem Ascânio Trindade, tão cumpridor
da lei. Com Ascânio ela redige cartas aos jornais da capital, petições ao
governa do Estado, reclamando ajuda para Agreste. Inúteis, cartas e petições.
Há mais de qui nze anos – dos vinte e
três de sua nomeação para os Correios e Telégrafos – funciona o ilegal esquema
estabelecido por ela e por Canuto Tavares, o outro funcionário da Agência,
proprietário da oficina de consertos em Esplanada, onde ganha bons cobres,
habilidoso com ele só.
Permanecesse em Agreste, não progrediria, vegetando a vida inteira, limitado ao
magro ordenado de telegrafista em Agência de última classe; decidiu abandonar o
emprego, mudar-se de vez, levando as ferramentas e a ambição.
Ao saber da
decisão do colega, Carmosina propôs-lhe barganha capaz de beneficiar os dois:
Canuto iria tranqui lo cuidar da
oficina em Esplanada, onde ganha bons cobres deixando exclusivamente por conta
dela o funcionamento da Agência dos Correios e Telégrafos de Sant’Ana do
Agreste, afinal não era trabalho de matar ninguém, em troca ele lhe daria
metade do ordenado.
Para Canuto, disposto a demitir-se, a proposta caiu como
sopa no mel. Para Carmosina nem se fala: aumentando-lhe a renda necessária ao
sustento da casa – para o qual dona Milú já não podia concorrer devido à idade:
parteira quase aposentada, ainda pegava menino, mas de raro em raro – deixava-a
senhora única e absoluta de cartas, telegramas, encomendas, revistas e jornais,
da vida, da cidade e do mundo.
Funciona o arranjo há mais de qui nze anos – ela saberia dizer exactamente quantos,
anos e meses – e em nenhum momento passou pela cabeça de alguém denunciar o
escandaloso envio do livro de ponto da repartição a esplanada para recolher a
assinatura de Canuto, levado em mão própria por Jairo. Quem ousaria?
Nela, o que me desgosta é a parcialidade. Queria ver como agiria Carmosina se
um dos filhos de Perpétua morresse e a mãe qui sesse
esconder o facto de Antonieta para conservar a ajuda pontual e íntegra. Se
teria idêntico comportamento ao que teve quando Elisa entrou na Agência em
desespero devido à morte de Toninho.
Dona Carmosina a consolara, o inocente
deixara de padecer, ruim de saúde desde o nascimento. Dona Milú ao retirá-lo do
ventre de Elisa se assustara, parecia um feto em formação, verdadeiro milagre
ter vivido tanto tempo.
Não adiantaram médico e remédio, pagos com as remessas
de Tieta, a ida a Esplanada para consultar doutor Joelson, especialista em crianças. O pediatra
balançara a cabeça: nem adianta receitar. O pobrezinho descansou e você também,
quantas noites sem dormir? Mas nem assim Elisa se acalma.
Além de perder Toninho – por mais enfermo e raquítico, era filho e consolo –
perdia a ajuda da irmã, o dinheiro mensal destinado ao leite, aos remédios, aos
médicos, à futura educação do sobrinho, e não a cosméticos, revistas, sessões
semanais de cinema, pilhas para rádio. Com Toninho partia para toda a
eternidade essas regalias compradas com as sobras da caridade de Tieta. Que
fazer, me diga, Carmosina?
Os olhos miúdos, apertados, fitaram Elisa – Carmosina a vira nascer. Dona Milú
emérita aparadeira de menino, chamada às pressas no meio da noite para atender
Tonha nas dores de parto, a soprar garrafa vazia a mando do Zé Esteves, levara
a filha de ajudante. Carmosina e Tieta ferveram água, auxiliaram e assistiram a
delivrança. Perpétua, pudica, trancara-se a rezar. Cada qual ajuda à sua
maneira.
Meninota, no caminho para a escola, Elisa vinha pedir a sua bênção à sua mãe de
umbigo, dona Milú; regalava-se com queimados de goiaba e coco, uma gostusura.
Carmosina foi quem primeiro recordou a Elisa a existência de Tieta, cujo nome a
família jamais pronunciava.
Tema escandaloso, mas Carmosina arranjava maneira
de lembrar a amiga. Ao contar um caso, referia-lhe o apelido e boniteza: Tieta,
tua irmã, estava comigo, bonita de dar gosto. Também Elisa crescera bonita de
dar gosto, casara, parira; Carmosina a vira nascer. Elegante no vestido enviado
por Antonieta, desesperada, nem sequer o filho doente para cuidar, que fazer?
Desditosa era o objectivo certo. Carmosina aproxima-se, murmura:
- Não mande contar nada…
- Hein?
- Faça como se Toninho não tivesse morrido…
- E se Perpétua fuxicar? Você conhece ela, toda moralista: não tolera mentiras,
vive dizendo.
- Se ela ameaçar, você ameaça também: quem tem mais podres a esconder? Ou você
pensa que ela fala a Tieta das casas, dos alugueis, da herança do major? Diz
que deposita na Caixa o dinheiro que Tieta manda para as despesas dos meninos
porque não lhe faz falta? Diz, uma ova.
Comprove-se a falta de Carmosina a aconselhar mentira e chantagem à amiga em
beco sem saída. Falta de honradez também: a par do conteúdo das cartas de
Perpétua por abuso de poder não lhe cabe o direito de utilizar tal
conhecimento. Mas Carmosina não liga importância aos conceitos de moral, às
regras de honradez. Não somente aconselha, dirige e intriga:
- Deixe Perpétua comigo. Eu mesmo falo com ela.
Perpétua ergueu os olhos para o céu a pedir ao senhor perdão do pecado,
descerrou os lábios:
- Por mim não vai saber. Se Antonieta cortar o dinheiro que lhe dá, no fim quem
vai ter de aguentar com ela e o marido sou eu.
Motivo justo, correcto, Perpétua é osso duro de roer, não se deixa chantagear.
Carmosina ri de leve, um riso de criança, tão inocente:
- Por isso ou pelo resto, o importante é calar o bico.
Mais um detalhe e vou-me embora. Lembram-se da carta de Ricardo pedindo bola de
futebol, recomendando segredo à tia?
Ao recordá-la, Carmosina por pouco deixa
escapar a revelação: também ela escrevera a Antonieta, rememorando os dias da
adolescência, a antiga amizade, enviando lembranças de dona Milú que não a
esquece.
Além de um pedido: podia Antonieta comprar em São Paulo e lhe remeter,
dizendo quanto custara, um bom, o melhor Dicionário de Rimas à venda nas
livrarias? Não mandava comprar em Aracajú ou na Baía, para evitar mexericos.
Não tardou a receber o livro com uma dedicatória: Para a querida amiga Carmô,
pálida lembrança da amiga Tieta.
Madrugada adentro, à luz do candeeiro, na calada da noite, Carmosina escreve
versos, com sílabas, rima ressonar com Osnar, pejo com desejo.
Agora que os senhores sabem, eu os deixo novamente na Agência dos Correios e
Telégrafos, ou melhor, no Areópago. Até breve.
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