Monumento ao Campino |
Hoje é
Domingo
(Na minha cidade
de Santarém em 29 /11/15)
Francisca
Van Dunen, actual Ministra da Justiça, do Governo de António Costa, é de raça
negra e amiga de há longos anos do jornalista Fonseca Ferreira, que tendo
estado presente no acto de posse, lhe dedicou este belo texto que não resisto a
transcrever na íntegra pela sua qualidade, sensibilidade e humanidade:
- “A minha amiga é negra. Ainda há pouco eu não me lembraria
de o dizer. Nesta semana, ela obrigou-me.
Claro,
não foi do género “olha, escreve lá no teu jornal que sou negra”. Foi assim,
ela estava a fazer uma coisa solene e ficou de cara levantada – dizia uma jura
pública – olhando-nos, olhos nos olhos, a mim e a você também. Eu disse-me:
está bem, Francisca, eu digo.
Ao
João, seu irmão, ele morreu há dois anos, eu até já chamei “preto”. Ele, o mais
cosmopolita dos meus amigos, apareceu-me com uns sapatos a que os americanos
chamam “spectators”. E chamam bem, porque de couro negro ou castanho e pala
branca, os “spectators” atraem a atenção e só ficam bem a quem os ousa usar.
Invejo-os
porque me sei disléxico de alfeiataria. Foi talvez o que me tenha levado a
dizer ao João. “Pareces um preto de Nova Orleães...” Ele gostou, olhou para os
sapatos e pôs-me a mão no ombro: “São bonitos, não são?” Acho que se permitiu a
superioridade, a mão no ombro, porque se aproveitou da minha nítida desvantagem
no vestir.
Geralmente
os irmãos Van Dunen tratam-me com menos sobranceria. Nem tanto por mim,
suspeito, mas porque eu fui “o amigo do Zé”, o mais velho dos irmãos.
Eu e o
José, jovens, íamos levar doces aos presos nacionalistas, 1968/1969... Os
guardas faziam diferença entre o branco e o preto, desprezavam este e
insultavam aquele.
Nós
regressávamos ao nosso bairro com aquela noção de irmanados que os amigos só
criam na infância ou na adolescência. O ter de ser cumprido, a nossa areia
vermelga aos pés, o futuro ali à mão, e nem orgulhosos íamos, só juntos.
Mas não
era bem assim. O nosso risco era igual – e estávamos de peito feito – mas o
risco dos nossos não era igual. Em casa dele tinha ficado a Dª Antónia, a mãe
do Zé, ela é que fazia os bolos e nos mandava entregar.
Ela
sabia o risco do seu menino e do amigo. Eu partiria para o exílio pouco depois
e o Zé seria preso no campo de São Nicolau. Ela não sabia ainda é que a espiral
acabaria trágica, que o filho seria assassinado, já pés firmes sobre a praia
sonhada, em 1977.
A Dª
Antónia vive em Lisboa, tem 93 anos. Ah, com ela eu nunca me permitiria a
palavra “negra”, nem agora quando a palavra foi conqui stada
pela Francisca. Não que a ofendesse, claro. Ela era, assumia e praticava aqui lo que era na nossa cidade – negra, o que não era
mera circunstância, era condição.
Mas
para mim a Dª Antónia é a senhora, ponto. À vezes, agora em Lisboa, quando ia
recordar com o João ou falar com a Francisca, eu puxava pelo antigamente dela.
Eu
deixava ir a conversa, como a Dª Antónia a faz, com silêncios, olhos tristes e
boca amarga, mas estava sempre a vê-la a entregar-nos o embrulho dos bolos para
levarmos à prisão.
O pai
da família foi sempre sóbrio comigo. Mateus Van Dunen passava na rua com o
irmão ambos silenciosos, ambos elegantes, vestidos à funcionário, com gravata,
o que era raro no bairro.
Eram
filhos de uma derrota – negros luandenses dos anos 1940, 50 e 60. Eu explico o
que lhes aconteceu: a República. A República burra, como tantas vezes acontece
às coisas boas em Portugal.
O
Alto-Comissário Norton de Matos decidiu um erro: substituir a elite angolana,
os filhos da terra, os nativistas, os angolenses, por gente ida de Portugal.
Não
percebeu que o que havia a perpetuar de Portugal em Angola era a gente com quem
Portugal se tinha cruzado.
Nas
décadas de 1910 e 20, Manuel Pereira dos Santos Van Dunen o pai dos dois irmãos
que eu veri juntos tantos anos depois, o avô de Francisca, foi perseguido,
preso e desapossado dos bens.
Aconteceu
o mesmo a outros dirigentes das associações, como a Liga Angolana, encerrada. O
jorna dele, O Angolano, foi fechado tal como a sua Tipografia Mamã Titã.
Aos
filhos de toda essa geração esperariam quase só lugares subalternos de
funcionários. Abandonavam as casas tradicionais da Cidade Alta e foram
afastando-se para os bairros periféricos, como o nosso bairro, o meu e o do Zé,
São Paulo.
A minha
amiga chegou jovem a Portugal, a sua universidade foi a de Lisboa, casou com um
açoriano, pariu um português e continuou negra.
Nos
anos 1930, a
geração do avô de Francisca, pagou para que se erigisse um monumento em Luanda,
a Luís Lopes de Sequeira, o crioulo. No Sec.XVII, esse mulato derrotou os
reinos de então, numa Angola que não existia.
Lopes
Sequeira, Cabo-de-Guerra, servia Portugal e acabou por fazer Angola, porque sem
ele, provavelmente, ela não o seria.
A
história capricha nos seus caminhos e da importância destes dirá o que vier.
Ah,
agora compreendo... o olhar de Francisca não queria que eu dissesse que ela era
negra mas que contasse tudo isto”.
Um
texto de homenagem à amiga Fancisca Van Dunen e uma lição bem importante da
história e do porquê do fracasso do colonialismo português. O resto, veio tudo
por arrasto.
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