Tieta, no regresso a Agreste |
TIETA DO AGRESTE
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº40
De shorte, à mostra as longas pernas, as modeladas coxas, a
blusa amarrada sob os seios, o umbigo de fora (ai, esses costumes de S. Paulo,
os meninos vão perder a virgindade dos olhos! Perpétua toca com os dedos as
contas do terço no bolso da saia), Leonora sorri, acalma Tieta:
- Vamos à praia noutro dia, Mãezinha. Dona Perpétua tem razão, a missa é mais importante.
– sorri para Perpétua – Mãezinha veio falando em Mangue Seco a viagem
toda. Mas a missa é sagrada.
Muito bem, assim fala uma boa filha, mesmo sendo paulista, pouco atenta ao
rigor do luto, aos prolongados ritos da morte, obrigatórios e rígidos em Agreste.
- Tem razão, Nora. Continuo cabeçuda como uma cabra velha. Quando quero uma
coisa não vejo nada à minha frente.
Iremos a Mangue Seco no outro fim-de-semana.
Conduzidas por Ricardo – vista a batina, acompanhe sua tia – foram à tarde
conhecer a casa de Elisa. Barraco de pobre, mana, caro só o aluguel. Caro? Se
fosse em São Paulo …
Lá, para começar, só os multimilionários moram em casas, os demais vivem
atulhados em apartamentos ou apodrecem em cortiços, sardinhas em lata.
Doce de araçá, raramente se faz, delicioso!
Licor de jenipapo. O que eu vou engordar, meu Deus! Gulosa, de volta aos
sabores da infância, Tieta repete a dose.
Na rua, encontram Ascânio Trindade. Por acaso ou de propósito, deixou ele a
Prefeitura às moscas? Querem ir aonde? Tem um passeio bonito: ali adiante o rio
se alarga e forma pequena bacia, reduto das lavadeiras, lugar lindo, chama-se
Bacia de Catarina, nome certamente posto, por um literato, antepassado de
Barbozinha.
Ou por ele mesmo noutra encarnação. Hoje não, tem de visitar dona a
Agência dos Correios, prometeram a Carmosina. Vão ao Aerópago? Ao quê?
Aerópago, é o apelido de Giovani Guimarães, um jornalista da capital, botou na
Agência dos Correios quando esteve em Agreste: ali se reúnem os sábios. Gozado!
Leonora aberta em riso, cristal a romper-se nas ruas de Agreste.
Breve parada na porta do cinema para dizer boa tarde ao árabe Chalita – ainda
se lembra de mim? Quem pode te esquecer, Tieta? Sorvete de Mangaba, Leonora não
conhece, vai ver o que é bom.
Hoje é de graça: o árabe se cobra lavando a vista
em Tieta e na moça. Regala-se com a visão de mil e uma noites, sob o
transparente tecido dos modelos, iluminados por um raio de sol.
Combinação
anágua? Isso não se usa mais, peças de museu. Sutiã? Para quê, se os seios são firmes,
não precisam de armação de entretela a sustentá-los? Calçola? Minúsculo tapa
sexo e basta. Viva a civilização e voltem sempre, suplica o árabe progressista.
Nas janelas, solteironas e mocinhas debruçam-se para enxergar melhor,
observando cada passo, cada gesto, comentando os trajes.
Você tinha coragem de
usar? Eu? Acho que não. Pois eu teria se mamãe deixasse. Tieta trouxe para
Elisa uma mini-saia mas ela ainda não se atreveu a estrear.
Alvoroço na bar, a
matilha nas portas, brechando. Até seu Manuel larga o balcão, também é filho de
Deus. Leonora acha graça em tudo, soltos, o riso e os cabelos; Ascânio recolhe
pela rua pedaços de cristal, recorda um verso ouvido não sabe: loira como um
trigal maduro. Fica sabendo do adiamento da visita a Mangue Seco e é convidado
para a missa pela alma do Comendador. Tieta deixa-o à vontade:
- Se não qui ser, não vá. Essa
história de missa de finado, só por obrigação. Aliás, Filipe tinha horror a
tudo o que cheirasse a morte, defunto, cemitério, missa do sétimo dia. Pelo meu
gosto ia a Mangue Seco. Mas Perpétua faz questão, paciência.
Ascânio não aprova nem desaprova, nessas divergências de opiniões entre as
irmãs não dá palpite, mas quanto a ir à missa, isso com certeza:
- No próximo sábado? Comparecerei, sem falta. Já estarei de volta.
- Vai viajar? – surpreende-se Leonora.
- Para onde? – interessa-se Tieta.
- Vou a Paulo Afonso tratar do problema da luz. Estão colocando luz da
Hidrelétrica nos municípios de toda essa zona do Estado, só deixaram de fora
três cidades, uma delas é Agreste, uma discriminação sem justificativa, no meu
entender.
Estou vendo se consigo que voltem atrás e nosso município entre na
relação dos beneficiados. Mandei ofícios para meio mundo, sem resultado. Alguns
nem tiveram resposta. Decidi falar pessoalmente com o director da usina. Numa
conversa cara a cara, quem sabe eu o convenço e deito abaixo essa injustiça.
- Vai demorar? – a pergunta de Leonora é um pedido: não demore, volte logo
estou à espera. Assim dizem os olhos.
- Não, só dois dias. Pego a marinete amanhã, amanhã mesmo me toco de Esplanada
para Paulo Afonso. Fico lá o dia de depois de amanhã, qui nta-feira
estou de volta. Talvez com uma boa notícia para Agreste.
Gosto de gente decidida como você – apoia Tieta: - Vá, brigue e convença o
homem, traga essa luz que Agreste bem precisa.
- Vai conseguir! – exalta-se Leonora: - Vou ficar torcendo.
- Se eu já estava disposto a brigar, agora nem se fala.
Sente-se Ascânio armado cavaleiro andante, partindo para o campo de luta sob a
inspiração da sua Dulcineia.
Ao voltar vitorioso, tendo convencido os frios e
distantes directores e técnicos da importância histórica e das possibilidades
turísticas de Agreste, difícil tarefa, árdua batalha, colocará aos pés de
Leonora o troféu conqui stado: a
refulgente luz da Hidroelétrica em substituição da bruxuleante iluminação actual
devido ao motor instalado por seu avô Francisco Trindade, quando intendente, no
tempo do onça.
Leonço, ex-soldado da Polícia Militar, ex-jagunço, actualmente paisano e capenga
– um tiro casual na zona, há vários anos – funcionário municipal, pau para toda
a obra, de faxineiro a moço de recados, de guardião a jardineiro, surge na esqui na, arrastando a perna: reclamam a presença de
Ascânio na Prefeitura.
- Me desculpem, preciso de ir, sei de que se trata. Até logo.
- Até qui nta, não é? Fico esperando
– diz Leonora, os doces olhos.
- Quinta, sim. Mas, se me permitem, passo hoje à noite por casa de dona
Perpétua para me despedir.
- Não precisa de pedir licença, venha sempre que qui ser
– convida Tieta.
- Venha mesmo. Sem falta – reforça a moça.
Na esqui na da Praça, Ascânio
volta-se, Leonora levanta a mão, acena, ele responde. Tieta se diverte:
- Já conqui stou a Prefeitura, hei,
cabrita? Rapaz simpático.
- Um amor… - resume Nora, a voz de enleio.
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