Santana do Agreste corre perigo com o SO2 |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 44
INTERREGNO ONDE O AUTOR, ESSE PILANTRA, EXPLICA A SUA POSIÇÃO
OPORTUNISTA
Enquanto Ascânio Trindade se apaixona, enquanto Elisa e Leonora sonham uma com
São Paulo outra com a paz do Agreste, aproveito para referir-me à notícia
publicada nas colunas de A Tarde, lida pelo indignado comandante Dário.
Pobre Nordeste!, exclamou o bravo marujo ante a possibilidade da poluidora
indústria estabelecer-se em nossas plagas onde já temos seca e latifúndio, o
hábito da miséria, o gosto da fome e as famosas trevas do analfabetismo antes
tão citadas hoje tão esquecidas: não se falando nelas talvez desapareçam na luz
dos tempos novos.
Jogar sobre tudo isso dióxido de titânio parece-lhe um
exagero antipatriótico. Opinião dele, da qual, como se verá, há quem discorde,
muitos e importantes personagens, alguns tão poderosos que me apresso a
esclarecer minha posição: sou neutro. Contaram-me o caso quando aqui cheguei, eu o passo adiante sem opinar.
Assim, por exemplo, a empresa referida na notícia e no comentário do jornal
pode ser a mesma que deu lugar a tanta discussão dividindo o povo em dois
campos, mas pode não ser ela, e sim outra, pois nunca ficou completamente
esclarecida a origem da sociedade nem a dos directores, dos patrões
verdadeiros.
Como sabemos o Dr. Mirko Stefano não passa de um testa de ferro a
comandar relações públicas e privadas, assinando cheques, abrindo garrafas de
uísque em rodas alegres, na gentil companhia de permissivas e agradáveis
dondocas, acendendo esperança e ambições, amaciando, passando vaselina para
permitir mais fácil penetração de ideias e interesses.
Saiu uma notícia no jornal, em sua divulgação não tenho a mínima
responsabilidade, não transcrevo sequer o título registado pela sociedade em
causa, nem o dela nem de nenhuma outra.
Se a fabricação de dióxido de titânio
faz economizar divisas aos cofres da nação e cria mercado de trabalho para uns qui nhentos chefes de família – qui nhentos vezes cinco são duas mil e qui nhentas pessoas vivendo da empresa – como acusar
de falta de patriotismo quem em tal indústria coloca seu dinheiro e aqueles a
apoiar suas pretensões?
Para provar-lhes o patriotismo e o desinteresse, argumentos não faltam, de
todos os tipos e de todos os géneros, inclusive aquele a convencer o nosso
ardente Leonel Vieira, plumitivo cuja integridade ideológica exigiu que o
cheque viesse acompanhado de razões sólidas.
A fábrica ajudará à formação do
proletariado, classe que, amanhã, bandeiras reivindicativas em punho, exigirá a
posse do poder. Um teórico do talento de Leonel Vieira não pode desprezar tal
argumento. Como se vê, de todos os tipos e para todos os géneros. Sem dióxido
de titânio não há progresso.
Não faltam igualmente razões aos que se opõem, pois na fumaça, nos gases
expelidos, no dióxido de enxofre pairam a destruição e a morte.
A presença de
SO2 na atmosfera fabril é altamente danosa à saúde dos operários e dos
habitantes que estão dentro do raio de diluição do gás, assim leu o comandante
no comentário do jornal. Morte para a flora e para a fauna, morte para as águas
e para as terras. Pequeno ou grande é o preço a pagar.
Não que eu fique indeciso: fico neutro, coisa muito diferente. Não me meto na
briga, quem sou eu? Desconhecido literato nas restauradas ruas antigas da Baía,
hoje atraccões turísticas, enfermo a buscar saúde no clima do sertão, não me
cabem conclusões.
Nesse interregno, nessa pausa na narrativa da chegada a
Agreste de Tieta e de Leonora Cantarelli, enquanto Ascânio discute em Paulo Afonso , antes
da missa pela alma do comendador, nesse interregno, repito, quero apenas
colocar aqui uma afirmação que, em
geral, se inscreve no início dos livros de ficção: toda semelhança é mera
coincidência.
Sem esquecer outro lugar comum: a vida imita a arte. Falta-me
arte, certamente, mas estou disposto a responder a processo por crime de
calúnia ou a ser agredido por um pau mandado de Mirko Stefano, melífluo e
untuoso, quase sempre.
Colérico e violento se preciso.
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