Prefiro que me chame de Tieta |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº71
DOS CIÙMES E DAS ESPERANÇAS DE ELISA COM CURIOSOS DETALHE SOBRE QUESTÃO
DE TRATAMENTO
Elisa não sabe nadar. Foram-lhe
proibidos rio e mar na meninice e na adolescência. Zé Esteves empobrecido
tornara-se intransigente e virulento – basta uma puta na família, advertia, o
bastão em punho.
Se namorou foi de longe, namoro de
caboclo, o olho comprido, vendo o velho expulsar os gabirus em roda pela rua.
Somente quando aparecer um bom partido, disposto a noivado e casamento: senão
boto no convento, ameaçava.
Ameaça vã, cadê convento? Astério, filho único,
herdara a loja onde desde menino trabalhava no balcão, rapaz inteiro. Pareceu
um bom partido, Zé Esteves concordou. Aos dezasseis anos, beleza de noiva.
Elisa se casou, pensando que se libertava. Mudou de servidão.
Fica no raso, não se atreve a ir mais
longe, enquanto Tieta e Leonora em meio às ondas e à animação da comitiva
inteira no rastro das paulistas. Elisa ali sozinha, abandonada. Nem sequer o
marido lhe faz companhia, prefere os amigos do bilhar. Também, pelo que vale e
serve…
Elisa tem ciúmes. Não que a irmã ou a
moça paulista possam se interessar por Astério, imagine-se! Leonora está de
namoro com Ascânio, os dois sempre juntos, não se largam.
Antonieta, viúva
recente, não veio a Agreste tomar marido de ninguém. Tomaria, se qui sesse com facilidade. Apesar dos quarenta e
quatro anos confessados – proclamados! – quando passa na rua, alegre e
descontraída, os homens correm a saudá-la, assanhados.
A pele lisa e macia,
tratada, tratadíssima, o corpo esplendoroso. Já fez plástica, com certeza,
comentara Elisa com dona Carmosina, ambas a par dos hábitos das artistas e das
grã-finas, dos milagres realizados pelo doutor Pitanguy em nacionais e
estrangeiras.
Certamente, Tieta, recondicionou sua beleza na clínica célebre,
limpando-a de rugas e pelancas: basta ver-lhe os seios jovens, magníficos,
opulentos porém firmes, mais firmes que os dela, Elisa.
Outros são os ciúmes de Elisa. Da
riqueza que elas ostentam, dos hábitos da cidade grande, da falta de
preconceitos, de limitações, ciúmes por não viver no mesmo mundo, tabaroa do
sertão, condenada ao desconsolo.
Ciúmes também de Leonora, do amor que
Tieta lhe dedica, a chamá-la pelo: Nora, a dizer-lhe filha, com desvelos
maternos.
Deseja os mesmos cuidados, amor idêntico, sentir-se mimada como
filha, adopt ada. Em certos momentos,
Antonieta é extremosa com ela, alisa-lhe a cabeleira negra, beija-lhe a face,
elogia-lhe a beleza: tu é bonita de mais.
Trata-a de filha e de Lisa,
ternamente, tudo parece encaminhar-se como ela deseja. Mas noutros momentos a
irmã a fita, pensativa, como se duvidasse do calor do seu afecto.
Elisa não
consegue entender o motivo da desconfiança, do desagrado da Tieta. Intrigas de
Leonora, quem sabe? Com receio da concorrência, de perder o lugar privilegiado
junto àquela de quem chama de Mãezinha.
Um dia, estando a sós com Tieta, também
Elisa a tratara de Mãezinha. A irmã dirigiu-lhe um olhar estranho, disse
ríspida:
- Prefiro que me chame de Tieta.
Voz e olhar deixaram Elisa trémula:
- Desculpe. Só qui s
lhe agradar, agradecer o que tem feito por mim.
Adoçaram-se olhar e voz de Antonieta,
afagou os cabelos negros da irmã mas não voltou atrás relativamente ao
tratamento:
- Não estou zangada. Apenas prefiro que
você me trate de Tieta. Em Agreste todos me tratam assim, eu gosto. Mãezinha é
nome de São Paulo, coisas de Nora e das outras meninas.
- As filhas do finado?
- As filhas, as sobrinhas, a família é
grande.
A essa família, sim, queria Elisa
pertencer, prol de Comendador, de rico industrial, gente graúda, linhagem fina.
Quer elevar-se da mediocridade do Agreste, salvar-se do cansaço, da
inutilidade, da avidez quotidiana. Quer as luzes, o brilho, a agitação, as
possibilidades, a aventura de São Paulo.
Em Agreste, sem horizontes, sem
futuro, vegeta, morre a cada dia.
Vestindo um maiô emprestado por Leonora
– o seu está velho e fora de moda – que lhe molda o corpo esplêndido, os
cabelos nocturnos caindo no cangote, sai da água, vem sentar-se na praia.
Enxerga Perpétua adormecida. Elisa sabe que a irmã mais velha tem um plano
traçado, essa é a opinião de dona Carmosina, a quem nada escapa.
Perpétua
ambiciona vender – vender muito bem vendidos – os dois meninos a Tieta,
mandá-los para São Paulo onde serão adopt ados
como filhos e herdeiros. Plano diabólico, dona Carmosina o desvenda inteiro, de
dedução em dedução.
Elisa não deseja tanto, não quer ser adopt ada de papel passado e sim de coração, não se candidata
a herdeira única.
Contenta-se com muito menos: basta que a irmã se compadeça da
mesqui nha sorte dela e do bestalhão
do Astério e os leve para São Paulo, dando a ele emprego nas fábricas da
família e tendo ela, Elisa, a seu lado, quase filha, amada tanto ou mais que
Leonora.
Já disse não desejar casa própria em Agreste. Se a irmã
pretende lhe dar alguma coisa, que seja em São Paulo onde a vida é digna de viver-se,
repleta de novidades e de tentações.
Lá terá quem lhe admire a beleza, não
apenas um árabe velho, um moleque sujo, um fétido mendigo. Será alguém, tendo
onde, tendo onde e a quem mostrar-se. Em São Paulo tudo pode acontecer.
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