sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Prefiro que me chame de Tieta
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº71






















DOS CIÙMES E DAS ESPERANÇAS DE ELISA COM CURIOSOS DETALHE SOBRE QUESTÃO DE TRATAMENTO



Elisa não sabe nadar. Foram-lhe proibidos rio e mar na meninice e na adolescência. Zé Esteves empobrecido tornara-se intransigente e virulento – basta uma puta na família, advertia, o bastão em punho.

No exemplo do sucedido com Tieta, Elisa cresceu de rédeas curtas, a qualquer pretexto o pau cantava-lhe nas pernas e nas costas. Bacia de Catarina, praia de Mangue Seco, nem pensar.

Se namorou foi de longe, namoro de caboclo, o olho comprido, vendo o velho expulsar os gabirus em roda pela rua. Somente quando aparecer um bom partido, disposto a noivado e casamento: senão boto no convento, ameaçava.

Ameaça vã, cadê convento? Astério, filho único, herdara a loja onde desde menino trabalhava no balcão, rapaz inteiro. Pareceu um bom partido, Zé Esteves concordou. Aos dezasseis anos, beleza de noiva. Elisa se casou, pensando que se libertava. Mudou de servidão.

Fica no raso, não se atreve a ir mais longe, enquanto Tieta e Leonora em meio às ondas e à animação da comitiva inteira no rastro das paulistas. Elisa ali sozinha, abandonada. Nem sequer o marido lhe faz companhia, prefere os amigos do bilhar. Também, pelo que vale e serve…

Elisa tem ciúmes. Não que a irmã ou a moça paulista possam se interessar por Astério, imagine-se! Leonora está de namoro com Ascânio, os dois sempre juntos, não se largam.

Antonieta, viúva recente, não veio a Agreste tomar marido de ninguém. Tomaria, se quisesse com facilidade. Apesar dos quarenta e quatro anos confessados – proclamados! – quando passa na rua, alegre e descontraída, os homens correm a saudá-la, assanhados.

A pele lisa e macia, tratada, tratadíssima, o corpo esplendoroso. Já fez plástica, com certeza, comentara Elisa com dona Carmosina, ambas a par dos hábitos das artistas e das grã-finas, dos milagres realizados pelo doutor Pitanguy em nacionais e estrangeiras.

Certamente, Tieta, recondicionou sua beleza na clínica célebre, limpando-a de rugas e pelancas: basta ver-lhe os seios jovens, magníficos, opulentos porém firmes, mais firmes que os dela, Elisa.

Outros são os ciúmes de Elisa. Da riqueza que elas ostentam, dos hábitos da cidade grande, da falta de preconceitos, de limitações, ciúmes por não viver no mesmo mundo, tabaroa do sertão, condenada ao desconsolo.

Ciúmes também de Leonora, do amor que Tieta lhe dedica, a chamá-la pelo: Nora, a dizer-lhe filha, com desvelos maternos. 

Deseja os mesmos cuidados, amor idêntico, sentir-se mimada como filha, adoptada. Em certos momentos, Antonieta é extremosa com ela, alisa-lhe a cabeleira negra, beija-lhe a face, elogia-lhe a beleza: tu é bonita de mais.

Trata-a de filha e de Lisa, ternamente, tudo parece encaminhar-se como ela deseja. Mas noutros momentos a irmã a fita, pensativa, como se duvidasse do calor do seu afecto.

Elisa não consegue entender o motivo da desconfiança, do desagrado da Tieta. Intrigas de Leonora, quem sabe? Com receio da concorrência, de perder o lugar privilegiado junto àquela de quem chama de Mãezinha.

Um dia, estando a sós com Tieta, também Elisa a tratara de Mãezinha. A irmã dirigiu-lhe um olhar estranho, disse ríspida:

- Prefiro que me chame de Tieta.

Voz e olhar deixaram Elisa trémula:

- Desculpe. Só quis lhe agradar, agradecer o que tem feito por mim.

Adoçaram-se olhar e voz de Antonieta, afagou os cabelos negros da irmã mas não voltou atrás relativamente ao tratamento:

- Não estou zangada. Apenas prefiro que você me trate de Tieta. Em Agreste todos me tratam assim, eu gosto. Mãezinha é nome de São Paulo, coisas de Nora e das outras meninas.

- As filhas do finado?

- As filhas, as sobrinhas, a família é grande.

A essa família, sim, queria Elisa pertencer, prol de Comendador, de rico industrial, gente graúda, linhagem fina. 

Quer elevar-se da mediocridade do Agreste, salvar-se do cansaço, da inutilidade, da avidez quotidiana. Quer as luzes, o brilho, a agitação, as possibilidades, a aventura de São Paulo. 

Em Agreste, sem horizontes, sem futuro, vegeta, morre a cada dia.

Vestindo um maiô emprestado por Leonora – o seu está velho e fora de moda – que lhe molda o corpo esplêndido, os cabelos nocturnos caindo no cangote, sai da água, vem sentar-se na praia.

Enxerga Perpétua adormecida. Elisa sabe que a irmã mais velha tem um plano traçado, essa é a opinião de dona Carmosina, a quem nada escapa.

Perpétua ambiciona vender – vender muito bem vendidos – os dois meninos a Tieta, mandá-los para São Paulo onde serão adoptados como filhos e herdeiros. Plano diabólico, dona Carmosina o desvenda inteiro, de dedução em dedução.

Elisa não deseja tanto, não quer ser adoptada de papel passado e sim de coração, não se candidata a herdeira única. 

Contenta-se com muito menos: basta que a irmã se compadeça da mesquinha sorte dela e do bestalhão do Astério e os leve para São Paulo, dando a ele emprego nas fábricas da família e tendo ela, Elisa, a seu lado, quase filha, amada tanto ou mais que Leonora.

Já disse não desejar casa própria em Agreste. Se a irmã pretende lhe dar alguma coisa, que seja em São Paulo onde a vida é digna de viver-se, repleta de novidades e de tentações. 

Lá terá quem lhe admire a beleza, não apenas um árabe velho, um moleque sujo, um fétido mendigo. Será alguém, tendo onde, tendo onde e a quem mostrar-se. Em São Paulo tudo pode acontecer. 

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