quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Em negociações com Deus...
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº 70
















Devota exemplar, incapaz de faltar a uma obrigação religiosa, missa, bênção, confissão, a santa comunhão, as procissões, zeladora-chefe da matriz, tesoureira da Congregação, Perpétua espera contar com a compreensão e ajuda do senhor para atingir os calculados fins.

Seu plano exige eficaz protecção de Deus e inocente colaboração dos meninos. A de Peto não lhe tem faltado. De onde está, Perpétua enxerga o filho nadando em torno da tia. Assim, com perseverança e gentileza, se conquista o coração, o amor de parente rica.


Tentara discutir com Ricardo, trazê-lo, mas o rapaz a derrotara, apoiado nas necessidades do reverendo; Vavá Muriçoca, o sacristão, amanhecera doente, não podia montar. 

Perpétua ficou sem argumentos, olhando o filho de batina no lombo do burro. Ainda mais do que ela, Ricardo merecia a protecção divina, tão piedoso e temente de Deus.

Queria os filhos, os dois, ao lado da tia o mais tempo possível.

Arquitectara complicado plano com o fim de obter que a irmã fizesse dos meninos seus herdeiros únicos, adoptando-os, se a medida legal se revelasse necessária. Precisa saber com certeza, projecta ida a Esplanada para se aconselhar com doutor Rubim.

O tempo é curto, torna-se urgente a ajuda de Deus para tocar o coração de Antonieta, para encaminhá-la à decisão correcta. Fazendo obrigatória colaboração de Ricardo e Peto. Depende de Deus e deles transformar a estima da parente em ternura maternal. Agradem à tia, não deixem ela sozinha, recomenda. 

Ajuda-me, Senhor!, implora. O tempo é curto.

Antonieta não determinara a duração da temporada em Agreste mas evidentemente sua demora não passará de mês e meio, dois meses; deve voltar para reassumir o controle dos seus negócios e já uns dez dias são decorridos. 

Pouco a pouco, com astúcia e paciência, Perpétua conseguira tirar da irmã várias informações sobre o estado de suas finanças. Ficou a par dos quatro apartamentos e do andar térreo no centro da cidade, alugados cada um dos cinco por uma fortuna mensal – casa de aluguer barato somente em Agreste.

Ainda não obteve informação precisa sobre a espécie de negócio directamente dirigido por Antonieta. Não se trata de indústria, as indústrias são geridas pelos filhos do Comendador, sendo Antonieta sócia mas não administradora. 

Deve tratar-se de comércio, loja de modas pois tinha funcionárias. Perpétua surpreendera conversa entre Tieta e Leonora em que faziam referência ao trabalho das meninas. 

Igual aos imóveis, essa casa comercial é propriedade exclusiva da irmã, presente do Comendador.

Perpétua vai perguntando, colhendo uma informação aqui, outra acolá. Antonieta e Leonora não são de muito contar. 

Talvez de propósito para não despertar a cobiça dos parentes. Uma coisa é certa: a magnitude da fortuna.

Os negócios são grandes, múltiplos e rendosos, dinheiro é cama de gato.

Outro dia, de uma das malas, a que está sempre trancada à chave, Antonieta retirou pasta ou maleta – uma 007 na exacta designação de Peto, de enciclopédica cultura cinematográfica – e a abriu, mantendo-a no colo virada para si. Ainda assim Perpétua conseguira, levantando-se como quem não quer nada, vê-la repleta de dinheiro, notas altas, um desparrame, pacotes e mais pacotes.

- Ai! Santo Deus! – exclamara.

Tieta explicou ter trazido dinheiro vivo não só para as despesas como para comprar terreno em Mangue Seco, dar sinal pela casa, garantir a compra.

- Aqui não existe banco e eu não gosto de ficar devendo.

- Mas tem uma fortuna aí. Você é maluca, deixar esse dinheiro aí dentro de uma mala, no armário.

- Só quem sabe é Leonora e agora você. É só não falar nisso.

- Eu, falar? Deus me livre – bate com a mão na boca – não vou mais é poder dormir sossegada.

Antonieta ri:

- Quando eu comprar o terreno e a casa vai diminuir muito.

Fortuna de paulista, fartura de dinheiro, não essa riquezinha do Agreste, de Modesto Pires, do coronel Artur de Tapitanga, de cabras e mandioca.

O importante é evitar que um dia – todos nós, um dia, temos de morrer, não é mesmo? – parte do dinheiro e dos bens vá parar em mãos dos enteados, dos filhos do falecido Comendador, dessa silenciosa Leonora que não cheira nem fede, uma pamonha.

Tieta é doida por ela, vive a cuidá-la, obrigando-a a comer, a beber leite de cabra todas as manhãs. A dita cuja deve ser igualmente muito rica, se bem Perpétua, na detalhada vistoria feita no quarto dela, quando examinou coisa por coisa, não tenha bispado mala de dinheiro.

 Nada está sob chaves, tudo aberto. Na bolsa, alguns milhares de cruzeiros, para Agreste bastante mas nem de longe comparável com o despropósito da 007 de Antonieta. Perpétua se arrepia ao recordar.

A irmã gosta dos sobrinhos, trata-os com afecto, alegra-se quando os vê. Faz-se necessário, no entanto, muito mais, é preciso que ela os trate como se fossem seus filhos, pois filhos devem ser. Os dois se possível, pelo menos um. Reconhecidos legalmente, herdeiros.

Caso Antonieta deseje levar um deles para São Paulo, Perpétua não se oporá, óptimo se escolher Peto. Menino perdido, solto em Agreste a matar aulas, tomando pau todos os anos, vagabundo no bar e no cinema, breve em lugares piores.

Mas se for Ricardo o escolhido para viver em São Paulo, tornar-se braço direito da tia, Perpétua estará de acordo. Peto tomará o lugar do primogénito no seminário, queira ou não queira, pois um dos dois pertence a Deus, assim ela prometera, encruada donzela, perdidas as esperanças terrenas, as últimas. Se Deus lhe desse esposo e filhos, um seria padre, a serviço da Santa Madre Igreja. Deus cumpriu, realizou o milagre, ela cumprirá também.

Na praia, os olhos semicerrados devido ao sol e ao vento, à luz violenta, propõe outra barganha ao senhor. Se Antonieta adoptar pelo menos um dos meninos, Perpétua se compromete a deixar para a Igreja, em testamento, uma das três casas herdadas do Major, a menorzinha, aquela onde morou Lula Pedreiro, agora alugada a Laerte Curte Couro, empregado de Modesto Pires.

Pequena mas bem situada, próxima do curtume, na pracinha onde fica a capela de São João Baptista. Pelo jeito, o Senhor recusa a proposta; íntima de Deus, Perpétua adivinha as reacções celestes.

Arrependida, retira a oferta, o senhor tem razão de ficar aborrecido; uma casinha de pequena renda em troca da fortuna de Antonieta, proposta ridícula. Ainda tenta argumentar: a praça está sendo calçada e ajardinada, terá bancos de ferro, o aluguer vai ser aumentado.

Não adianta: se continuar o Senhor pode até se ofender. Pede bens consideráveis, oferece ninharia. Mais do que dinheiro e propriedades, Deus precisa de devoção e fé.

Pois bem, se Antonieta tomar, Ricardo ou Peto como filho e herdeiro, qualquer deles, Perpétua irá com os dois à capital – à cidade da Baía, sim, Senhor Deus! – e lá, a pé se dirigirá à Basílica, na colina sagrada, onde mandará rezar missa, deixando no Museu dos Milagres, fotografia dos filhos com dedicatória para o todo-poderoso Nosso Senhor do Bomfim.

Se a irmã adoptar os dois a missa será cantada. O Senhor deve levar em conta, na proposta, o facto dos meninos já possuírem direitos assegurados; apenas não são os únicos herdeiros.

O ideal seria que Antonieta, tendo adoptado os dois mandasse Ricardo completar o curso em seminário de são Paulo, desses que formam logo cónegos e bispos.

No calor do sol, no correr do vento, no remoer de planos e promessas, Perpétua cerra completamente os olhos, adormece e sonha. Vê-se acompanhando a procissão da Senhora Sant’Ana, numa cidade imensa, maior do que Aracaju, deve ser São Paulo, na frente do andor um bispo em vermelho e roxo, um Cardeal, é seu filho Cupertino Baptista Júnior, Dom Peto. Um aviso do céu, compromisso selado, promessa aceite, milagre à vista.

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