(Domingos Amaral)
Episódio Nº 233
Ramiro, sentindo-se ofendido, levou a mão
à espada e gritou:
-
Olhai que vos arranco a língua, infiel asqueroso.
Era evidente que aqueles dois não se
suportavam e na manhã seguinte, no início da festa, isso ainda foi mais óbvio.
No pátio da Sé viam-se já muitos
populares. As mouras estavam num palanque, para o qual Ramiro não deixou subir
o almocreve, enxotando-o, tratando-o como se ele fosse um mero popular, um
intruso sem direitos especiais que não podia juntar-se às amigas.
O monge guerreiro sentia-se orgulhoso dos
seus novos companheiros, todos vestidos de cotas de malha e cobertos por novos
mantos brancos, com uma cruz vermelha bordada no peito.
Era o novo hábito da Ordem do Templo de
Salomão que sucedia à anterior Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo.
Do grupo original, que viera de Viseu já
tinham morrido o Mestre Gondomar, o Urso, o Ameixa e o Santinho e só restavam o
Velho, o Rato e o Peida Gorda, além de Ramiro.
A eles se haviam juntado novos membros vindos
do Porto, de Lamego e Guimarães e até de Compostela, cavaleiros que se tinham
aventurado para o Sul na esperança de combater infiéis.
Curiosamente, havia também três moçárabes,
dois dos quais eram provenientes de Lisboa e um de Santartém.
Ramiro gabou a qualidade guerreira deste
último, um pastor com quem um ano antes se cruzara na estrada e a quem
sugerira, caso não tivesse sorte na povoação scalabitana, vir alistar-se em
Soure.
Aos poucos Ramiro dera conta de que o
pastor era hábil com a lança, com as flechas e sobretudo com a espada, e logo o
começara a enviara em missões difíceis, enfurecendo o Rato que tinha ciúmes do
novato.
Quando o novo bispo de Coimbra se
aproximou do púlpito, para iniciar a cerimónia, as trocas de olhares entre todos
estavam no auge.
Em frente ao palanque, Mem admirava Zaida,
que sorria a Gonçalo e também ao príncipe. Já Ramiro admirava o pastor,
enquanto o Rato se contorcia enervado.
Éramos todos tão jovens... Eu tinha vinte
e um anos, tal como Gonçalo e Fátima; Zaida dezoito; Afonso Henriques vinte
tantos como Ramiro, Peres Cativo vinte e três e Mem apenas vinte e quatro.
Os desejos de folguedos, ou as paixões da
carne, distraem os homens e as mulheres, sobretudo quando são jovens e nesse
dia pagámos um preço alto por essas humanas perturbações, pois ninguém
conseguiu a tragédia que se seguiu.
Coimbra, Julho de 1129
Depois da missa dita por Bernardo, o novo
bispo de Coimbra, que substituíra o falecido Gonçalo Pais, o mestre Jean
entregou a Ramiro um texto sobre as regras da Ordem do Templo de Salomão.
O documento, que Jean trouxera de Cister,
fora escrito originariamente em latim por Bernardo de Claraval, intitulava-se
«de laude novae militiae» e tivera de
ser traduzido para que Ramiro o pudesse ler em voz alta e todos os presentes o
compreendessem.
Lembro-me de olhar para ele e admitir que
talvez a morte de Paio Soares o tivesse libertado da opressão que sempre o subjugara.
Sabia que fora apaixonado por Chamoa e que
se alistara na Ordem para fugir do pai, mas sempre me parecera um rapaz
submisso e soturno, por isso espantei-me com aquela nova maneira dele,
entusiasmado e confiante, enquanto lia aquele texto.
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