quarta-feira, abril 06, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)



Episódio Nº 233



















Ramiro, sentindo-se ofendido, levou a mão à espada e gritou:

 - Olhai que vos arranco a língua, infiel asqueroso.

Era evidente que aqueles dois não se suportavam e na manhã seguinte, no início da festa, isso ainda foi mais óbvio.

No pátio da Sé viam-se já muitos populares. As mouras estavam num palanque, para o qual Ramiro não deixou subir o almocreve, enxotando-o, tratando-o como se ele fosse um mero popular, um intruso sem direitos especiais que não podia juntar-se às amigas.

O monge guerreiro sentia-se orgulhoso dos seus novos companheiros, todos vestidos de cotas de malha e cobertos por novos mantos brancos, com uma cruz vermelha bordada no peito.

Era o novo hábito da Ordem do Templo de Salomão que sucedia à anterior Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo.

Do grupo original, que viera de Viseu já tinham morrido o Mestre Gondomar, o Urso, o Ameixa e o Santinho e só restavam o Velho, o Rato e o Peida Gorda, além de Ramiro.

A eles se haviam juntado novos membros vindos do Porto, de Lamego e Guimarães e até de Compostela, cavaleiros que se tinham aventurado para o Sul na esperança de combater infiéis.

Curiosamente, havia também três moçárabes, dois dos quais eram provenientes de Lisboa e um de Santartém.

Ramiro gabou a qualidade guerreira deste último, um pastor com quem um ano antes se cruzara na estrada e a quem sugerira, caso não tivesse sorte na povoação scalabitana, vir alistar-se em Soure.

Aos poucos Ramiro dera conta de que o pastor era hábil com a lança, com as flechas e sobretudo com a espada, e logo o começara a enviara em missões difíceis, enfurecendo o Rato que tinha ciúmes do novato.

Quando o novo bispo de Coimbra se aproximou do púlpito, para iniciar a cerimónia, as trocas de olhares entre todos estavam no auge.

Em frente ao palanque, Mem admirava Zaida, que sorria a Gonçalo e também ao príncipe. Já Ramiro admirava o pastor, enquanto o Rato se contorcia enervado.

Éramos todos tão jovens... Eu tinha vinte e um anos, tal como Gonçalo e Fátima; Zaida dezoito; Afonso Henriques vinte tantos como Ramiro, Peres Cativo vinte e três e Mem apenas vinte e quatro.

Os desejos de folguedos, ou as paixões da carne, distraem os homens e as mulheres, sobretudo quando são jovens e nesse dia pagámos um preço alto por essas humanas perturbações, pois ninguém conseguiu a tragédia que se seguiu.



Coimbra, Julho de 1129



Depois da missa dita por Bernardo, o novo bispo de Coimbra, que substituíra o falecido Gonçalo Pais, o mestre Jean entregou a Ramiro um texto sobre as regras da Ordem do Templo de Salomão.

O documento, que Jean trouxera de Cister, fora escrito originariamente em latim por Bernardo de Claraval, intitulava-se «de laude novae militiae»  e tivera de ser traduzido para que Ramiro o pudesse ler em voz alta e todos os presentes o compreendessem.

Lembro-me de olhar para ele e admitir que talvez a morte de Paio Soares o tivesse libertado da opressão que sempre o subjugara.

Sabia que fora apaixonado por Chamoa e que se alistara na Ordem para fugir do pai, mas sempre me parecera um rapaz submisso e soturno, por isso espantei-me com aquela nova maneira dele, entusiasmado e confiante, enquanto lia aquele texto.

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