terça-feira, abril 05, 2016

Tieta do Agreste
 (Jorge Amado)


EPISÓDIO Nº 118






















DO HÍMEN NA GARUPA DO CAVALO


Por uma porta saía das profundas dos infernos o seminarista Ricardo, por outra nelas penetrava, atravessando as chamas eternas, desvairado, Ascânio Trindade, secretário da prefeitura do município de Sant’Ana do Agreste, amoroso votado à decepção.

Liberto de condenação e pena, ressuscitado no campo dos hipies, na aura da santidade do frade, na força dos remos de Jonas, o seminarista cedeu sua vaga nos infernos ao amargurado sofredor, reincidente vítima dos descabaçadores profissionais.


Para quem fora mais difícil a conversa? Para ele, sobre cuja cabeça ruiu o mundo pela segunda vez, ou para dona Carmosina, aplicada e atenta estudiosa das relações dos seres humanos, mas não fria, insensível analista.

Sofrera com a dor do amigo, dilacerando-se ao dilacerá-lo, prendendo as lágrimas nos olhos húmidos ao revelar a verdade sobre as consequências físicas do infeliz noivado de Leonora. Desejara ser subtil e delicada, escolher as palavras, explodiu brusca e aflita:

- Seja homem!

Foi tudo quanto disse num arroubo infeliz. Explicação difícil, mesmo para dona Carmosina, de verbo fácil e eloquente. Quando Ascânio a viu cheia de dedos, vacilante, gaguejando, sem rumo para a confidência, pedira numa voz de condenado à morte:

- Diga de uma vez, seja o que for.

Pensava saber do que se tratava desde a tarde, quando dona Carmosina lhe avisara, em segredo, no Areópago:

- Tenho um assunto a falar com você. Passe lá em casa hoje à noite. Aqui não pode ser.

Certamente, ante as visitas diárias, as conversas na varanda da casa de dona Perpétua, a presença imposta a qualquer pretexto, as flores, o pássaro sofrê, o casal de noivos montado num burro, evidente insinuação em barro cozido, a noiva em branco, o noivo em azul, dona Antonieta ou a própria requestada tinha mandado dona Carmosina chamar a sua atenção para a desagradável inutilidade de tamanha insistência. Não se dava conta do abismo a separá-lo da moça paulista? 

Um pobretão do Agreste, reduzido a ínfimo salário de servidor municipal de prefeitura sem rendas, não tem direito a aspirar a mão de herdeira milionária, cobiçada por potentados e lordes do Sul. Não podia ser outro o tema da conversa.

Restava-lhe saber de quem a iniciativa. De dona Antonieta? De Leonora? Idêntica na terrível consequência, a punhalada causaria maior ou menor sofrimento, dependendo no entanto de quem a vibrasse.

Ascânio esperava que partisse o recado de dona Antonieta, madrasta preocupada com o futuro da enteada, adoptada e amada como filha nascida do seu próprio ventre. Não nega razões ao amor materno: ele as compreende e agirá como homem de bem, afastando-se; antes de tudo a felicidade de Leonora.

Talvez ela também sofresse com a drástica medida e esse sofrimento da bem-amada ajudá-lo-ia a suportar a provação, a cumprir o sacrifício. Podia acontecer também – e por que não? – que Leonora se revoltasse contra a madrasta dinheirista e resolvesse lutar ao lado dele pela continuação do idílio.

Caber-lhe-ia então mostrar dignidade e desprendimento, renunciando, imolando-se, já que não pode oferecer a quem tem tanto a dar. Exaltantes pensamentos a consolá-lo durante a desassossegada tarde de espera.

Apesar do corajoso apelo para desembuchar tudo de uma vez, fosse o que fosse, dona Carmosina continuou buscando forças, reunindo coragem, um nó na garganta. Não suportando mais tanta demora, Ascânio resolveu colocar as cartas na mesa, a voz lúgubre:

- Dona Antonieta mandou pedir que eu deixe Nora em paz, não foi?

Antes fosse tarefa assim tão fácil: junto com o recado, dona Carmosina daria opinião, conselho para que continuasse a luta, não abandonasse o campo de batalha. Vendo-a ainda calada, Ascânio adiantou a pior hipótese:

- Então foi Leonora mesmo quem mandou dizer… - voz de condenado à morte após a denegação do pedido de graça.

Dona Carmosina tenta falar, emite apenas um som gutural, Ascânio entra em pânico:

- Pelo amor de Deus, fale alguma coisa, Carmosina. Ela é doente? Pulmão? Já pensei nisso, não tem importância. Tuberculose, hoje, não mete medo a ninguém…

Dona Carmosina faz das fraquezas forças:

- Nora foi noiva, você sabe.

- De um canalha, sei. Queria avançar no dinheiro dela mas dona Antonieta o desmascarou, você me contou. Mas eu não quero dinheiro de ninguém, só lastimo que ela seja rica. Tem muita gente que casa com separação de bens.

- Também tem homens que casam com viúva…

- Com viúva? A que vem isso? Não entendo.

Tendo começado, dona Carmosina foi em frente:


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