(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 118
DO HÍMEN NA GARUPA DO CAVALO
Por uma porta saía das profundas dos infernos o seminarista Ricardo,
por outra nelas penetrava, atravessando as chamas eternas, desvairado, Ascânio
Trindade, secretário da prefeitura do município de Sant’Ana do Agreste, amoroso
votado à decepção.
Liberto de condenação e pena, ressuscitado no campo dos
hipies, na aura da santidade do frade, na força dos remos de Jonas, o
seminarista cedeu sua vaga nos infernos ao amargurado sofredor, reincidente
vítima dos descabaçadores profissionais.
Para quem fora mais difícil a conversa? Para ele, sobre cuja cabeça
ruiu o mundo pela segunda vez, ou para dona Carmosina, aplicada e atenta
estudiosa das relações dos seres humanos, mas não fria, insensível analista.
Sofrera com a dor do amigo, dilacerando-se ao dilacerá-lo, prendendo as
lágrimas nos olhos húmidos ao revelar a verdade sobre as consequências físicas
do infeliz noivado de Leonora. Desejara ser subtil e delicada, escolher as
palavras, explodiu brusca e aflita:
- Seja homem!
Foi tudo quanto disse num arroubo infeliz. Explicação difícil, mesmo
para dona Carmosina, de verbo fácil e eloquente. Quando Ascânio a viu cheia de
dedos, vacilante, gaguejando, sem rumo para a confidência, pedira numa voz de
condenado à morte:
- Diga de uma vez, seja o que for.
Pensava saber do que se tratava desde a tarde, quando dona Carmosina
lhe avisara, em segredo, no Areópago:
- Tenho um assunto a falar com você. Passe lá em casa hoje à noite. Aqui não pode ser.
Certamente, ante as visitas diárias, as conversas na varanda da casa de
dona Perpétua, a presença imposta a qualquer pretexto, as flores, o pássaro
sofrê, o casal de noivos montado num burro, evidente insinuação em barro
cozido, a noiva em branco, o noivo em azul, dona Antonieta ou a própria
requestada tinha mandado dona Carmosina chamar a sua atenção para a
desagradável inutilidade de tamanha insistência. Não se dava conta do abismo a
separá-lo da moça paulista?
Um pobretão do Agreste, reduzido a ínfimo salário
de servidor municipal de prefeitura sem rendas, não tem direito a aspirar a mão
de herdeira milionária, cobiçada por potentados e lordes do Sul. Não podia ser
outro o tema da conversa.
Restava-lhe saber de quem a iniciativa. De dona Antonieta? De Leonora?
Idêntica na terrível consequência, a punhalada causaria maior ou menor
sofrimento, dependendo no entanto de quem a vibrasse.
Ascânio esperava que
partisse o recado de dona Antonieta, madrasta preocupada com o futuro da
enteada, adopt ada e amada como filha
nascida do seu próprio ventre. Não nega razões ao amor materno: ele as
compreende e agirá como homem de bem, afastando-se; antes de tudo a felicidade
de Leonora.
Talvez ela também sofresse com a drástica medida e esse sofrimento da
bem-amada ajudá-lo-ia a suportar a provação, a cumprir o sacrifício. Podia
acontecer também – e por que não? – que Leonora se revoltasse contra a madrasta
dinheirista e resolvesse lutar ao lado dele pela continuação do idílio.
Caber-lhe-ia então mostrar dignidade e desprendimento, renunciando,
imolando-se, já que não pode oferecer a quem tem tanto a dar. Exaltantes
pensamentos a consolá-lo durante a desassossegada tarde de espera.
Apesar do corajoso apelo para desembuchar tudo de uma vez, fosse o que
fosse, dona Carmosina continuou buscando forças, reunindo coragem, um nó na
garganta. Não suportando mais tanta demora, Ascânio resolveu colocar as cartas
na mesa, a voz lúgubre:
- Dona Antonieta mandou pedir que eu deixe Nora em paz, não foi?
Antes fosse tarefa assim tão fácil: junto com o recado, dona Carmosina
daria opinião, conselho para que continuasse a luta, não abandonasse o campo de
batalha. Vendo-a ainda calada, Ascânio adiantou a pior hipótese:
- Então foi Leonora mesmo quem mandou dizer… - voz de condenado à morte
após a denegação do pedido de graça.
Dona Carmosina tenta falar, emite apenas um som gutural, Ascânio entra
em pânico:
- Pelo amor de Deus, fale alguma coisa, Carmosina. Ela é doente?
Pulmão? Já pensei nisso, não tem importância. Tuberculose, hoje, não mete medo
a ninguém…
Dona Carmosina faz das fraquezas forças:
- Nora foi noiva, você sabe.
- De um canalha, sei. Queria avançar no dinheiro dela mas dona
Antonieta o desmascarou, você me contou. Mas eu não quero dinheiro de ninguém,
só lastimo que ela seja rica. Tem muita gente que casa com separação de bens.
- Também tem homens que casam com viúva…
- Com viúva? A que vem isso? Não entendo.
Tendo começado, dona Carmosina foi em frente:
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