(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº120
- E conseguiu?
- Não sei, não posso te dizer. Só poderia tirar a limpo se a coisa
acontecesse e eu tivesse de resolver, de enfrentar o problema.
Acontecera com ele, Ascânio, tantos anos depois, quando não tem máximo
a seu lado para o debate, a conversa, o conselho.
Formados, Aparecida e Máximo
já não são os radicais de ontem se bem não houvessem renegado os dias da
juventude; ele se acomodara na Justiça do Trabalho, advogado de sindicados e
operários, ela pendurara o diploma para dedicar-se ao marido e aos filhos.
Sozinho, Ascânio deve enfrentar e resolver o problema.
Na noite sem descanso, em nenhum momento culpou Leonora, a seu ver
incauta vítima do canalha. Não a julgando culpada ou indigna, sofria
tão-somente por sabê-la deflorada, incompleta.
Dilacerado pela dúvida:
prosseguir desejando-a como esposa, sonhando noivado e casamento ou desaparecer
para sempre da sua frente? Terá forças para fitá-la, sabendo que ela foi
possuída por outro, desonrada?
Nesse dilema debateu-se noite afora, o coração opresso, as lágrimas
impondo-se sobre o orgulho masculino, vacilando entre a força do preconceito e
a força do amor.
Uma única solução não lhe ocorreu em momento algum,
exactamente a desejada por Tieta: transformar o idílio casto em agradável
aventura casual, trocar o sonho do casamento pela possibilidade de dormir com
Leonora enquanto ela permanecesse em agreste, aproveitando-se do conhecimento
do seu estado, encerrando o caso na porta da marinete, num rápido ou prolongado
beijo de despedida.
Quando a madrugada nasceu sobre o rio, o amor vencera a primeira
batalha: Ascânio não conseguira arrancar Leonora do coração, nem a ela nem ao
propósito de tê-la como esposa, senhora do seu lar.
Não obstante, a ferida
estava aberta, sangrando, e ele temeu encontrá-la imediatamente. Talvez não
conseguisse esconder o sofrimento, sobretudo, não desejava que ela o soubesse a
par da verdade. Não era homem de dissimular os seus sentimentos, não sabia usar
a máscara, tudo o que ia por dentro dele se reflectia no rosto.
Não estando certo de poder controlar face e coração, guardando ainda
lágrimas por chorar, decidiu ir fiscalizar algumas obras da prefeitura em
Rocinha, pontilhões e mata-burros. Acordou o moleque Sabino que dormia na sala
do cinema, numa cama de vento, deixou com ele um recado para Leonora: chamado
urgente obrigava-o a afastar-se da cidade por um ou dois dias; partindo ao
romper do sol, não pudera despedir-se. Apenas voltasse iria vê-la.
Iria vê-la ou não, tudo dependeria da reflexão e da decisão dela
decorrente. Selou o cavalo – dádiva do coronel Artur de Tapitanga à prefeitura
– e tocou-se para os matos, levando na garupa o hímen roto de Leonora. Ia com
ele no passo lento do cansado animal, levantando detalhes, dúvidas, indagações.
Uma única vez ou muitas vezes? Muitas não teriam sido pois o embusteiro
fora desmascarado e expulso; talvez algumas poucas, mais de uma porém. Que
importa quantas vezes? O terrível é ter ela se dado a outro, não se haver
conservado íntegra e pura.
Fizera-o, todavia, antes de conhecer Ascânio, nada a assemelhava à
traidora Astrud, a escrever-lhe cartas de amor enquanto se rebolava com o outro
e dele engravidava. Leonora apenas se entregara em momento de desvario; quando
a paixão falou mais alto que a decência.
Teria apenas deixado se possuir, enganada pela lábia do miserável ou,
no prosseguimento dos embates, conhecera a violência e a doçura do prazer,
desmanchando-se em gozo?
No dorso do cavalo, no meio das plantações de mandioca ou do verde
milharal, ouvindo queixas e pedidos dos roceiros, as indagações o prosseguiram
e revolveram, o hímen de Leonora atado à garupa do cavalo, mil vezes deflorado
na viagem lenta, no combate longo.
Do dilacerado hímen o amor cresceu vitorioso. Ascânio, aos poucos, sem
a ajuda dos hipies, de padres progressistas e de proféticos canoeiros acalmou o
coração, reteve as lágrimas e enterrou o preconceito.
Passou a imaginá-la
viúva, uma jovem, formosa e infeliz viúva. Imbatível dona Carmosina, cabe-lhe
sempre a derradeira palavra. A uma viúva não se reclama a virgindade, apenas
decoro e amor. Decidiu prosseguir no sonho – de tão difícil consecução – de um
dia pedir a mão de Leonora em casamento.
De regresso a Agreste, foi em seguida visitá-la a casa de Perpétua.
Leonora achou-o abatido, sem dúvida cansado da viagem, tantas léguas a cavalo,
sob o sol ardente, cuidando dos interesses do município. Passou-lhe a mão na
face, brandamente, em inocente agrado. Violada, sim, porém perfeita de candura
e pureza, casta mais que qualquer virgem.
Depois, com o recado do magnata do turismo e o suicídio do prefeito, a
certeza da eleição próxima para o cargo, as novas perspectivas abertas para o
município e para ele próprio, Ascânio sentiu-se com esperanças válidas
O facto
de Leonora não ser mais virgem facilitava, inclusive, a boa solução. No mercado
do matrimónio, o valor da jovem… Meu Deus, como pensar em termos de mercado
quando se trata de amor, tão forte amor a ponto de matar e enterrar o mais
antigo e arraigado preconceito?
Vitorioso, sim, mas não em paz, tinha razão o Comandante. Ainda não,
pois a película do novo hímen na chaga aberta no peito de
Ascânio renasce pouco a pouco, lentamente.
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