terça-feira, maio 03, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)





Episódio Nº 256



















Parecia pouco interessado na história da antiga relíquia, mas nem eu nem Gonçalo partilhávamos desse alheamento, pois a sombra do Trava naquela artimanha enervava-nos.

Assim, pedimos a Chamoa que nos recordasse a revelação que lhe fizera o marido na véspera do combate no campo de Ataca, perto de Guimarães.

Nessa última noite, antes de ser ferido, Paio Soares relembrara à esposa que, no longínquo ano da morte do conde D. Henrique o acompanhara em batalhas contra os mouros, em Sintra, e numa ida à cidade de Coimbra, para pacificar uma rebelião dos locais.

O conde Henrique trouxera algo de muito valioso da Terra Santa, e durante essa estada na cidade à beira do Mondego decidira fazer uma expedição secreta.

Saíra certa noite, apenas acompanhado de Paio Soares e um terceiro homem, um padre. Os três tinham passado por Soure e descido mais a sul, embrenhando-se em zonas perigosas, onde os sarracenos ainda dominavam.

Um dia depois, chegaram a um ermitério, próximo do rio Nabão, onde encontraram um velho e solitário monge, que o conde conhecia há muitos anos.

Durante a tarde dirigiram-se os quatro a umas velhas ruínas romanas, onde esconderam a relíquia e o conde ordenou que o sagrado artefacto ali ficasse até que seu filho, Afonso Henriques, tivesse idade para reinar.

Só o príncipe poderia um dia vir a recolher a relíquia, para com ela iluminar o novo reino de Portugal e liderar os cristãos, na luta contra os infiéis.

Os quatro eram os únicos a conhecerem aquele segredo. Ao monge era dado o estatuto de guardião do esconderijo, ao padre o privilégio de avisar Roma e o Papa do paradeiro da relíquia se Afonso Henriques morresse, e a Paio Soares o dever de um dia, quando o príncipe tivesse idade para reinar, partilhar com ele o segredo, caso o conde já não o pudesse fazer.

Depois de todos jurarem que assim seria, o conde, o alferes e o padre regressaram a Coimbra, e nessa mesma noite Paio Soares gravou no cabo do seu punhal e em latim o nome da arruinada e antiga povoação romana onde a relíquia ficara escondida.

Quando, meses mais tarde, o conde faleceu de forma imprevista em Astorga, envenenado por Dona Urraca, Paio Soares compreendeu que eles não eram os únicos a saberem do segredo e que corria perigo de vida, pois a rainha de Leão e Castela desconfiava dele.

Por isso se afastara para Maia, por isso evitara ir a Lanhoso, e só depois da morte de Dona Urraca se reaproximara de Dona Teresa.

Meu marido queria muito ter filhos varões, mas nunca pensou que casar-se comigo iria gerar um conflito tão grave convosco – constatou a pesarosa Chamoa, olhando para Afonso Henriques.

Durante mais de dois anos, Paio Soares vivera dividido entre o amor a Chamoa, que o obrigava a lealdade a Dona Teresa e ao Trava, e a antiga promessa que fizera ao Conde D. Henrique, de revelar ao príncipe o paradeiro da relíquia.

Infelizmente, nunca tivera coragem para trair vossa mãe, como tantas vezes lhe pedi – lamentou-se Chamoa.

Afonso Henriques abanou a cabeça e admitiu:

 - Eu também não ajudei.

A disputa pela rapariga galega, as provocações do príncipe e a incapacidade de Paio Soares em mudar de partido na guerra haviam conduzido ao desastre final.


Afonso Henriques ferira mortalmente o mordomo-mor, em São Mamede, impedindo-o de lhe contar o que sabia e enfurecendo Chamoa contra ele e agora tudo se precipitara, pois a única depositária do segredo revelara-o aos inimigos dos portucalenses.

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