A minha cidade de Santarém. |
Hoje é
Domingo
(Na minha cidade de Santarém em 14/8/14)
Recordar é voltar a viver de mansinho...
Há dois momentos da vida em que sentimos problemas de solidão. O primeiro, quando na juventude, já crescidotes, naquela fase de transição para homem, nos apercebemos de que a vida a sério nos espera, que para trás ficaram os cuidados, apoios e afectos que nos rodearam como se nos fossem devidos, dando depois lugar a um medo que mais parece solidão face a um futuro desconhecido que está já aí.
O outro momento em que voltamos a sentir solidão é quando nos apercebemos que a vida começa a despedir-se de nós, quando as saudades e recordações nos preenchem o pensamento como campainhas a tocar alertas para o fim que se aproxima.
Também, neste caso, é um medo revestido de solidão porque todos começaram a ir embora e nós ficamos cada vez mais sós, aguardando a vez…
Há um ciclo biológico que se cumpre, já o sabíamos, sempre o soubemos, mas vivê-lo não é a mesma coisa!...
Inexoravelmente, com frieza, como se não tivéssemos sentimentos… a um ritmo e cadência em manifesto desprezo pelo nosso mundo de afectos, todos se vão indo...
Seria justo que esse ritmo abrandasse, cedesse um pouco quando estamos a ser felizes, em paz com a vida, ou não é a felicidade para nós, homens e mulheres deste planeta, o grande e principal desígnio?
De resto, toda ela decorre num cenário de amores de muitas tonalidades, umas fortes e arrebatadoras, outras calmas e tépidas roçando, por vezes, uma aparente indiferença.
Quando, pelos meus catorze, qui nze anos, entrei num Colégio interno, quase em regime de clausura com tantos colegas à minha volta, surpreendentemente, senti-me só pela mesma razão que uma árvore isolada me acolhe e protege mas a floresta me amedronta e retrai.
Toda aquela vida eufórica à minha volta cavou em mim um vazio… não havia afectos, o relacionamento era de disputas, conflitos, alianças, quando muito algumas simpatias também provocadas pelo mesmo isolamento.
Em meu socorro veio a comunidade da língua portuguesa na forma de cartas em envelopes com moldura amarelo e verde enviadas por uma jovem da minha idade da cidade de Campinas, no Brasil, que aceitara corresponder-se comigo.
Durante todo esse período de alguns anos fechado no Colégio, com os meus pais divorciados e desavindos, foi a Dulce a árvore a que me acolhi no seio daquela floresta de “mal comportados”…
Esperava as suas cartas com uma ansiedade que me queimava o coração. O Director, o velho mas rijo professor Raul Lopes, encaminhava-se para os degraus da escada com o maço das cartas debaixo do braço e virava-se para os alunos que aguardavam a leitura dos nomes nos sobrescritos.
Eu não precisava de ouvir, ninguém me escrevia, bastava vislumbrar no conjunto das cartas o envelope debruado a amarelo e verde, vindo do Brasil, e logo se me alegrava a alma, eufórica, quando o via...
Afastava-me, sem pressas, queria prolongar aqueles momentos, não era por notícias que esperava, apenas pela carta.
Depois do jantar, na sala de aulas para estudo, disfarçava o papel de carta de avião dentro do caderno, debruçava-me sobre a carteira e no tempo que se seguia não havia aluno mais concentrado nem minutos que passassem mais depressa…
Em toda a minha vida aqueles viriam a ser os momentos mais íntimos, mais sonhados, de maior comunhão… Nenhuma barreira seria capaz de me segurar na cadeira daquela sala, dentro daquelas paredes, naquele edifício de onde eu voava até junto de uma jovem loira, cabelos compridos, que tocava violão e que eu imaginava olhando-me nos olhos, bebendo as minhas palavras.
Como eu me sentia? … não sei explicar se era êxtase, felicidade, eu só tinha qui nze, talvez dezasseis anos anos! O que ia naquelas cartas eram bocadinhos de mim mesmo, não eram palavras, era eu próprio…
A Dulce percebia isso, os jovens da mesma geração entendem-se como almas gémeas.
Como teria sido se estivéssemos um ao pé do outro? Não seria, de certo, com tanta intensidade… aquela distância toda, o oceano Atlântico a separar-nos, o destino, cada um para seu lado em partes tão diferentes do mundo, tão longe um do outro e ainda tão meninos, tudo em conjunto fazia aumentar a força do sentir…
Como é poderoso o amor platónico vivido dentro de nós.
Como foi lindo!... Não voltei a ter outros momentos assim em toda a minha vida. A capacidade para sonhar aos dezasseis anos quando se está só e carente não tem limites e esta jovem que eu nunca conheci pessoalmente, preencheu um troço da minha vida em que eu não tinha mais ninguém, e ela foi, na realidade, a grande namorada da minha vida.
Não sei se ainda és viva, velhinha és, com certeza, como eu. Estarás, por isso, na fase de balanço em que se alinham as recordações e, como vês, tu estás na lista das minhas recordações.
Espero e desejo, Dulce, que tenhas sido feliz. A mensagem que captei ao longo dos anos em que nos escrevemos provinha de uma pessoa doce e boa e, por isso, mereces que o tenhas sido, embora saibamos que a vida é ingrata e muito pouco justa.
Tantos anos passaram… uma vida já longa e, no entanto, tudo está fresco na minha memória como se tivesse sido ontem, tal como nos velhos edifícios de granito nos quais, o tempo, não consegue beliscar.
É isso, pedra de granito, a natureza de algumas recordações que nos acompanham toda a vida, teimosas, dizendo-nos silenciosas: - “ só saio quando te fores embora...”
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