quinta-feira, agosto 11, 2016

O Rapaz do Trompete
















A vida é fugaz, um sopro, um suspiro, um abrir e fechar de olhos. Antes, o nada, depois, o nada de novo. Entre os dois nadas, a vida. 

Debruço-me sobre ela, braço esticado, revolvendo com os dedos da minha imaginação as recordações que por lá existem. Puxei uma ao acaso, já amarelecida pela idade…há quantos anos! 

Eu teria para aí os meus dezanove, vinte anos, estudava então no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, que em 1961 mudou para Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) por causa dos novos ventos da política internacional de então.

O meu pai alugara-me um quartinho numa casa particular pertença de mãe e filha, viúvas, que para sobreviverem arrendaram três quartos que milagrosamente conseguiram fazer sobrar de um primeiro andar do velho prédio de azulejos azuis que dava para o Jardim do Príncipe Real - tal como as magníficas portas do Palacete onde, então, funcionava o meu Instituto.

Estávamos no primeiro ano da década de 60. Em Janeiro, Henrique Galvão, numa operação com o nome de código Dulcineia - surripiou, em pleno alto-mar, o paquete Santa Maria para desespero de Salazar  que ficou possesso  e regozijo da tímida oposição.

Lembro-me, perfeitamente,  de parar no passeio para ver o cabeçalho do jornal “O Século” que relatava, com uma grande fotografia do paquete, a notícia que tinha foros de escândalo nacional.

Ri-me para dentro como o cão Mutley. Estávamos no tempo em que até o apontar, para além de feio, era perigoso.

Mas, quanto ao resto, tudo era calmo naquela Lisboa pacífica e provinciana, e o meio estudantil universitário ainda tinha que aguardar uns anos pelos ventos agitados de Maio de 68 para dar de si.

Nunca mais regressei ao “meu” Jardim do Príncipe Real onde, nas horas de lazer, me deliciava com as leituras do Pitigrilli e nas de aperto, para os exames, media forças com a sebenta de Princípios Gerais de Direito para tentar perceber aquelas vinte e tal páginas em que o Prof. Adriano Moreira explicava as diferenças entre Direito Público e Privado. 

Essa explicação seria, anos mais tarde, feita por Freitas do Amaral, muito melhor e com um terço das páginas...

Para além disto, era o retrato rotineiro dos jardins de Lisboa, com os magalas a namoriscarem as sopeiras, o fulano que vendia a banha da cobra e que, estacionado no passeio, desertava sobre as maravilhas do produto que fazia bem a tudo e  tinha a ver com uma cobra que toda a gente esperava ver quando ele abrisse a mala que estava no chão, a seus pés, e que afinal só guardava os frascos da poção mágica que começavam a ser vendidos quando a conversa já não dava para esticar mais e o pessoal à sua volta ameaçava desertar.

E havia também um sujeito que parava muito por ali, com aspecto de chuleco, ares de galã dos “pampas”, morenaço, calças justas, botas à vaqueiro e andar à Yul Brynner, e ao que diziam as más-línguas, empalitava o Mister Cork, da Casa das Cortiças, ali ao lado, do nosso Instituto, que tinha tanto de gordo, barrigudo e mesureiro   a despedir-se dos clientes estrangeiros, como a mulher, muito mais nova que ele, tinha de “boa”.

Finalmente, havia a minha vizinha da cave e como último personagem desta história de memórias, o malfadado rapaz do trompete.

Ela, era uma jovem linda como os amores, o seu rosto, o de uma boneca que me deixava fascinado como o passarinho se hipnotiza  pelo olhar da serpente.

Não a podia ver à janela pois a cave, onde morava, por baixo de mim, apenas dava para um pequeno e esconso saguão, mas sempre que nos cruzávamos à saída ou entrada do prédio era um encantamento para mim. Segui-a com o olhar e perguntava-me como é que uma rapariga tão linda podia sair daquela cave escura, húmida e mal cheirosa em vez de um palácio a que a sua beleza lhe dava direito?

Eu era um aluno universitário, coisa rara naquele tempo, ela uma pobre rapariga que nem a 4ªclasse teria e, no entanto, os meus olhos enchiam-se com a sua figura e eu, tímido,  sentia-me como um barco à deriva aguardando a orientação de um olhar seu que nunca veio.

Jamais trocámos palavra, nem um simples bom-dia, mas ela era, definitivamente, a eleita do meu coração, a musa inspiradora dos meus sonhos… até que um dia despertei para a realidade ao som de um estridente, agudo e desafinado trompete, desesperadamente soprado por um não menos desafinado músico… era o namorado.

Maldito, não só se tinha apropriado da minha secreta namoradinha como, ainda por cima, fazia-se anunciar junto dela com aquele maldito trompete!

Que desperdício, junto de uma rapariga tão linda tocava-me trompete… raios o partam, como eu o invejei!

A esta distância, as paixões da juventude, tal como as cartas de amor de Fernando Pessoa, parecem-nos ridículas.

Em boa verdade, aos 20 anos estava descomandado e ter-me-ia apaixonado perdidamente por qualquer linda ou não linda, jovem que ousasse levantar certos olhares para mim.

O que eu não sabia e vim a perceber mais tarde, é que me limitava a cumprir instruções da “mãe" natureza que em código cifrado no meu ADN, exigia que transmitisse os meus genes à fêmea mais bonita da minha tribo para que os meus filhos também nascessem lindos e tivessem, por isso, mais oportunidades de continuarem os meus genes pelas gerações seguintes.

A beleza, entre nós, representa um trunfo para a procriação, as contas bancárias viriam mais tarde...

Já lá dizia Vinícius de Morais, “… que me perdoem as feias mas eu prefiro as lindas…" 

E é assim, simples coisas da biologia transformadas em lindos romances de amor, pois não me consta que a Dulcineia do D. Quixote, ou a Julieta do Romeu, fossem vesgas ou tivessem borbulhas na testa…

Site Meter