sexta-feira, novembro 18, 2016

A Vénia
















A minha mãe deu-me a mim e ao meu irmão uma educação esmerada, como era hábito no pós-guerra, nas famílias burguesas, que passava por beijar as mãos das senhoras, dar-lhes o lugar no eléctrico, não falar perante estranhos respondendo apenas ao que nos perguntavam, etc...

Nos primeiros anos da década de 40, na Europa, andava tudo à bulha, mas em Portugal reinava Salazar e a paz, com quase toda a gente a viver no mundo rural, chamavámos-lhe a “província”, em contraponto com a cidade, e onde dominava o pé descalço.

As botas, quando existiam, estavam guardadas para ir ás feiras mas no trajecto seguiam às costas, uma para a frente outra para trás, presas pelos atacadores uma à outra.

Foi um período estável de adormecimento do país, sem classe média, todos pobres com meia dúzia de ricos, latifundiários e... Alfredo da Silva, fundador de um império abrangendo empresas emblemáticas, como a Companhia União Fabril (CUF), a Tabaqueira, o Estaleiro da Rocha ...

Não havia televisão, viria em 57, e o que tínhamos para preencher os serões era a telefonia e os programas do Igrejas Caeiro, na Emissora Nacional, mas que não resistiu porque era do “contra” e acabou saneado politicamente.

Sobrou-nos as transmissões dos Campeonatos de Hóquei em Patins, onde éramos barras, feitas pelo inigualável Artur Agostinho, e que eram ouvidas por todas as aldeias do país com recurso às tabernas/mercearias/cafés, onde o rádio era ligado a baterias por não haver ainda electricidade.

Vejam lá... tudo isto a propósito da vénia com beijinho na mão, do Presidente Marcelo à Rainha Isabel II, que hoje faz capa no meu jornal DN, e da qual ainda fui contemporâneo, porque a ela também fui ensinado em pequenino.

Reparem nas imagens: Marcelo aproxima-se quase em posição de sentido, sem oscilar os braços de um e outro lado do corpo, e pára a uma distância respeitável dobrando-se, então, pela cintura, num ângulo obtuso acentuado como um autentico homem da plebe perante a realeza sem que tenha deixado de olhar nos olhos a rainha, porque ele era Portugal e para humilhações bastaram as do mapa Cor de Rosa... cortesia que saíu tão bem que, de certeza, foi ensaiada.

As próprias palavras de recordação do passado quando Isabel II visitou Portugal e se deslocou na célebre carruagem dos cavalos brancos que Craveiro Lopes lhe enviou para a receber e que deu lugar à célebre anedota do desabafo da rainha: “... e eu a julgar que os meus cavalos eram brancos antes de ver os seus...” piada à luta comercial de então entre a OMO e o Teed: “... de que a minha roupa está mais branca do que a sua porque foi lavada com...”

Também eu me lembro de tudo quanto se passou e disse já que vivia em Lisboa, com a diferença de que nessa data, eu já era um homenzinho enquanto Marcelo um rapazinho. Nove anos nos separam e de certeza não lhe contaram aquela anedota mordaz que os lisboetas não perdoam:

- “No baile de gala de recepção à Rainha, esta, muito encostadinha a ele, segreda-lhe ao ouvido:

 - “Presidente, tens uma piça que vale um império...”

Responde-lhe ele:

- “ ... em contrapartida tenho um império que não vale uma piça...”

Já lá vão quase sessenta anos... como o tempo passa!

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