quinta-feira, janeiro 16, 2014

Quincas ajeitou-se melhor no caixão...
A MORTE

E A MORTE

DE QUINCAS

BERRO DÁGUA

Episódio Nº 13


Fisionomia melancólica, fitou o cadáver. Sapatos lustrosos onde brilhava a luz das velas, calça de vinco perfeito, paletó negro assentando, as mãos devotas cruzadas no peito.

Pousou os olhos no rosto barbeado. E levou um choque, o primeiro.

Viu o sorriso. Sorriso cínico, imoral, de quem se divertia. O sorriso não havia mudado, contra ele nada tinham obtido os especialistas da funerária.

Também ela, Vanda, esquecera-se de recomendar-lhes, de pedir uma fisionomia mais a carácter, mais de acordo com a solenidade da morte. Continuava aquele sorriso de Quincas Berro Dágua e, diante desse sorriso de mofa e gozo, de que adiantavam sapatos novos – novos em folha enquanto o pobre Leonardo tinha de mandar botar, pela segunda vez, meias solas nos seus – de que adiantavam roupa negra, camisa alva, barba feita, cabelo engomado, mãos postas em oração?

Porque Quincas ria daquilo tudo, um riso que se ia ampliando, alargando, que aos poucos ressoava na pocilga imunda. Ria com os lábios e com os olhos, a fitarem o monte de roupa suja e remendada, esquecida num canto pelos homens da funerária.

O sorriso de Quincas Berro Dágua.

E Vanda ouviu, as sílabas destacadas com nitidez insultante, no silêncio fúnebre:

 - Jararaca!

Assustou-se Vanda, seus olhos fuzilaram como os de Octacília, mas seu rosto tornou-se pálido. Era a palavra que ele usava, como uma cuspidela, quando, no início dessa loucura, buscavam, ela e Octacília, reconduzi-lo ao conforto da casa, aos hábitos estabelecidos, à perdida decência.

Nem agora, morto e estirado no caixão, com velas aos pés, vestido de boas roupas, ele se entregava. Ria com a boca e com os olhos, não era de admirar se começasse a assobiar.

E, além do mais, um dos polegares – o da mão esquerda – não estava devidamente cruzado sobre o outro, elevava-se no ar. Anárquico e debochativo.

- Jararaca! – disse de novo, e assobiou gaiatamente.

Vanda estremeceu na cadeira, passou a mão no rosto – será que estou enlouquecendo? – sentiu faltar-lhe o ar, o calor fazia-se insuportável, sua cabeça rodava.

Uma respiração ofegante na escada: tia Marocas, as banhas soltas, penetrava no quarto. Viu a sobrinha descomposta na cadeira, lívida, os olhos pregados na boca do morto.

Você esta abatida, menina. Também com o calor que faz nesse cubículo…

Ampliou-se o sorriso canalha de Quincas ao enxergar o vulto monumental da irmã. Vanda quis tapar os ouvidos, sabia, por experiência anterior, com que palavras ele amava definir Marocas, mas que adiantam mãos sobre as orelhas para conter voz de morto? Ouviu:

- Saco de peidos!

Marocas, mais descansada da subida, sem olhar sequer o cadáver, escancarou a janela:

 - Botaram perfume nele? Está um cheiro de tontear.

Pela janela aberta, o ruído da rua entrou, múltiplo e alegre, a brisa do mar apagou as velas e veio beijar a face de Quincas, a claridade estendeu-se sobre ele, azul e festiva. Vitorioso sorriso nos lábios, Quincas ajeitou-se melhor no caixão.

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