Bigodes espetados de um lado e do outro |
A CASA
DA
LENHA
Na minha aldeia...
Rapaz, disse-me o meu pai quando o sol desaparecia no horizonte: a partir de hoje, começa a ser Inverno nesta casa, vai ao chaveiro, leva a chave da casa da lenha e uma cesta e trás cavacas para debaixo da chaminé.
Não era fácil abrir a porta da casa
da lenha, fechada desde o Inverno anterior, para além de que a chave, de ferro,
era grande para a minha mão e era-me difícil manipulá-la.
Depois, havia o trinco, a aldraba e por fim a
lingueta e todos aqueles sons metálicos a fazerem de acompanhamento sonoro que
emprestavam solenidade à abertura de uma porta nas casas antigas.
Empurrei-a com dificuldade
empecilhada que estava pelos gravetos da lenha que alguém se teria esquecido de
varrer como era de obrigação.
Lentamente, levantei o candeeiro um pouco
acima dos olhos e dei tempo a que a luz definisse os contornos do amontoado da
lenha recortados nas paredes caiadas de branco, mais amarelas que brancas,
convenhamos.
Finalmente, olhei para o chão e bem
na minha frente, a uns três metros de distância, esperava-me um pequeno exército
de ratinhos.
À frente, aquele que deveria ser o chefe,
cabecita levantada na minha direcção, bigodes espetados de um lado e de outro,
numa pose toda ela de desafio.
Atrás dele, em formação militar,
filas de ratinhos, uns a seguir aos outros, todos eles, à imagem do chefe,
cabecitas levantadas na minha direcção, bigodes eriçados, ar desafiador e
hostil não deixando dúvidas de que eu não era bem recebido.
Não estavam ali por acaso, há muito
que, de certo, me esperavam. Os mais velhos, aqueles que pela idade já não
teriam forças para estarem na primeira linha, teriam avisado que um dia, que
eles não saberiam qual, viria um humano estragar o seu belo castelo de cavacas
e mais grave, levar, umas após outras… as suas belas cavacas!
Naquele momento, aguardando o
desfecho da situação, lá atrás, escondidos com medo mas dispostos ao
sacrifício, estariam com certeza, os familiares daqueles ratinhos-soldados,
orgulhosos pela coragem e determinação dos que assumiram heroicamente a
responsabilidade de uma luta tão desigual.
Eu estava perplexo, não sabia o que
pensar. Talvez se saltasse para cima deles com as minhas botas de tacão e cano
alto e pulasse e voltasse a pular com certeza que sairia vencedor esmagando-os
a todos mas algo me tolhia os movimentos e inibia a decisão… e se eles tivessem
uma poção mágica, como a do Obelix?
Se assim fosse estaria explicada
tanta coragem e ousadia que roçavam a loucura e o suicídio.
Defrontarem-me a mim, um humano, e
eles simples ratinhos, tão pequeninos… hum!, teria que haver uma qualquer arma
secreta!
Resolvi dar um passo em frente,
seriam eles ou eu, aquela situação de impasse não podia continuar.
Avancei um passo, nem rápido nem
lento, determinado, não deveria demonstrar medo, a vantagem era toda minha,
essa era a minha convicção, era isso que eu tinha que lhes dar a entender.
Eles fizeram um recuo que percebi que
era táctico e como eram muito pequeninos, para conseguirem responder ao meu
passo fizeram uma pequena corrida atrás sem alterarem entre si as posições e muito
menos a atitude de hostilidade e desafio.
Depois, foi a minha vez de dar um
passo atrás e eles, acto contínuo, uma corridinha à frente e tudo voltou à
situação inicial.
Continuavam a olhar-me com os seus
olhos muito pequeninos mas que irradiavam a enorme força e convicção dos seus
propósitos.
Não era um desafio qualquer… para eles era a
conqui sta do seu espaço, do seu
território, o tudo ou nada, a vida ou a morte.
O meu olhar é que já não era o mesmo,
a surpresa e perplexidade tinham desaparecido, tal como o meu natural instinto
de esmagar o mais fraco.
Caí em mim, desinteressei-me das
cavacas e percebi que estava perante a decisão suprema de um grupo que face ao
direito à vida no seu espaço e território, tinha decidido morrer com honra
lutando sem hipóteses de vencer.
Eu seria um adversário imbatível, as
minhas botas de tacão e cano alto, arma demasiado poderosa. A poção mágica era
apenas produto da minha imaginação, o destino daquela luta estava traçado à
partida.
O massacre seria o desfecho inevitável
e eu não estava preparado para ele. Sentia, no fundo, que a razão lhes assistia
e o simples exercício da lei do mais forte deixou de fazer sentido para mim.
Fortes, eram eles que morreriam
corajosamente enquanto que eu não passaria de um simples executor sem honra nem
glória.
Voltei-lhes as
costas e regressei com a cesta vazia, não sem antes ouvir atrás de mim a porta
da casa da lenha fechar-se com fragor.
Sentei-me ao pé de meu pai que olhou
para a cesta e perguntou-me pelas cavacas da casa da lenha.
Deixei passar tempo sem responder,
ele insistiu na pergunta: disse-lhe que já não tínhamos casa da lenha…
pertencia, por direito próprio, a uma comunidade de heróicos ratinhos.
Não sei o que o meu pai respondeu,
tão pouco se disse alguma coisa… entretanto a história tinha acabado.
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