sábado, agosto 01, 2015

Assim

Nasceu 

Portugal

(Domingos Amaral)




Episódio Nº 31









De um momento para o outro, quando nada o fazia prever, aparecera um demónio branco que o degolara. Mem não sabia o que fazer.

Estava nu, nem se lembrava onde entrara no rio e deixara a roupa, e não queria deixar o seu pai ali, para ser roído pelos bichos, a apodrecer ao sol.

Mas também não tinha forças para o enterrar, nem nada com que fazer fogo para o cremar. Era apenas uma criança de doze anos, não estava preparado para aquela provação, e limitou-se a ficar ali, ajoelhado, as lágrimas escorredo-lhe pela cara.

A dada altura, o mundo escureceu, e ele deduziu que era o que acontecia quando morria alguém de quem gostávamos muito.

Aquilo era mesmo estranho, parecia que estava a anoitecer ao meio-dia.

Então Mem olhou em volta e viu melhor: o que se passava não era dentro dele, mas sim fora dele.

Ergueu os olhos para o sol e notou que ele desaparecera atrás de uma bola castanha, escurecendo o dia. E ao lado, no céu, existiam estrelas.

Seria um milagre? Deus e Alá tiraram a luz ao mundo? Mem estava perplexo. O pai nunca lhe falara em nada assim.

De repente ouviu um barulho, alguém a aproximar-se. Era uma mulher já envelhecida, com a cara cheia de rugas e verrugas.

Feia, estava vestida de preto, com um capuz da mesma cor a cobrir-lhe a cabeça. Contudo, não parecia triste ou zangada, apenas curiosa.

Ao vê-lo acercou-se apoiada no seu cajado. Reparou no corpo e na cabeça degolada e suspirou.

 - Sois cristão ou árabe?

Mem não era uma coisa nem outra, era as duas ao mesmo tempo, ou nenhuma delas.

O pai era muçulmano mas não ligava a rezas, embora gostasse de falar da Bíblia, e a mãe, apesar de cristã, morrera há tanto tempo que Mem já não se recordava do dia em que entrara numa igreja pela última vez.

Como ele não respondeu, a velha concluiu:

 - Sois moçárabe.

Olhando para o corpo morto declarou:

- O vosso pai não pode ficar assim. Como não temos com que enterrá-lo, teremos de queimá-lo.

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