Nasceu
Portugal
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 31
De um momento para o outro,
quando nada o fazia prever, aparecera um demónio branco que o degolara. Mem não
sabia o que fazer.
Estava nu, nem se lembrava
onde entrara no rio e deixara a roupa, e não queria deixar o seu pai ali, para
ser roído pelos bichos, a apodrecer ao sol.
Mas também não tinha forças
para o enterrar, nem nada com que fazer fogo para o cremar. Era apenas uma
criança de doze anos, não estava preparado para aquela provação, e limitou-se a
ficar ali, ajoelhado, as lágrimas escorredo-lhe pela cara.
A dada altura, o mundo
escureceu, e ele deduziu que era o que acontecia quando morria alguém de quem
gostávamos muito.
Aqui lo
era mesmo estranho, parecia que estava a anoitecer ao meio-dia.
Então Mem olhou em volta e
viu melhor: o que se passava não era dentro dele, mas sim fora dele.
Ergueu os olhos para o sol e
notou que ele desaparecera atrás de uma bola castanha, escurecendo o dia. E ao
lado, no céu, existiam estrelas.
Seria um milagre? Deus e Alá
tiraram a luz ao mundo? Mem estava perplexo. O pai nunca lhe falara em nada
assim.
De repente ouviu um barulho,
alguém a aproximar-se. Era uma mulher já envelhecida, com a cara cheia de rugas
e verrugas.
Feia, estava vestida de
preto, com um capuz da mesma cor a cobrir-lhe a cabeça. Contudo, não parecia
triste ou zangada, apenas curiosa.
Ao vê-lo acercou-se apoiada
no seu cajado. Reparou no corpo e na cabeça degolada e suspirou.
- Sois cristão ou árabe?
Mem não era uma coisa nem
outra, era as duas ao mesmo tempo, ou nenhuma delas.
O pai era muçulmano mas não
ligava a rezas, embora gostasse de falar da Bíblia, e a mãe, apesar de cristã,
morrera há tanto tempo que Mem já não se recordava do dia em que entrara numa
igreja pela última vez.
Como ele não respondeu, a
velha concluiu:
- Sois moçárabe.
Olhando para o corpo morto
declarou:
- O vosso pai não pode ficar
assim. Como não temos com que enterrá-lo, teremos de queimá-lo.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home